domingo, 14 de julho de 2019



CULTURA_É ...

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2019-2 – notas do Prof. Dr. Celso Vallin

O que é cultura?


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O termo deriva de cultivo, cultivar. Do mesmo modo que se pode cultivar a terra, ou cultivar uma amizade, fala-se no cultivo do espírito humano, como vemos a seguir:

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (LARAIA, 1986, p. 25).

Como vemos a cultura não é algo inato, ou determinado biologicamente, mas aprendido com o grupo de convivência. Já nos anos 1700 falavam sobre isso. Destaque para “de uma comunidade”. Cultura é algo que é comum a um grupo social, e não são aspectos sociais que cada pessoa pensa e faz. Só valem aquelas coisas que são comuns ao grupo, apesar de algumas pessoas fazerem diferente.

Olhando de certo modo, a adaptação da pessoa aos conhecimentos, crenças e modo de vida de sua comunidade pode ser o destaque, como no trecho que segue.

Sahlins, Harris, Carneiro, Rappaport, Vayda e outros [...] concordam que: "Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos bio-lógicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.". (LARAIA, 1986, p. 59)

Aqui a palavra adaptar ganha destaque. Adaptar-se aos hábitos de vida da comunidade. Mas será que a cultura pode ser alterada? Uma cultura pode evoluir? E nós, podemos ter um papel nessa mudança cultural? Claro que sim. Vejamos essa outra citação.

Geertz considera que a antropologia busca interpretações. Com isto, ele abandona o otimismo de Goodenough que pretende captar o código cultural em uma gramática; ou a pretensão de Lévi-Strauss em descodificá-lo. A interpretação de um texto cultural será sempre uma tarefa difícil e vagarosa (LARAIA, 1986, p. )

Quando falamos em texto cultural, aparece uma abertura para se pensar em mudanças. Freire (1965) olha para outros aspectos envolvidos. Para ele o conceito antropológico de cultura envolve nossa relação com a natureza, com o trabalho nela, e deve ser crítica e criadora:

entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e comunicação dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A democratização da cultura — dimensão da democratização fundamental. (FREIRE, 1965, p. 108 e 109)

Nos primórdios da humanidade, éramos mais próximos da natureza. É sempre bom lembrar que somos parte da dela. A humanidade foi alterando o que era natural, e foi procedendo criações, não só de espírito, mas concretas. Para isso usou a ciência (que é o conhecimento em geral), e surgiram as ferramentas (que são construídas por pessoas e que servem para ser usadas na vida). Ao contrário do que podemos pensar, as ferramentas não são neutras. Elas carregam em si o conhecimento, a ciência. Cada ferramenta é um artefato tecnológico, e serve para realizar coisas para as quais foi pensada. Um martelo serve para bater com mais força. Um lápis serve para escrever. Um teclado de computador tem a escrita alfabética por trás de sua criação. Uma técnica ou tecnologia são ideias que servem para fazer e resolver desafios práticos, e as ferramentas são desenvolvidas para serem usadas conforme a tecnologia.

Fato é que a humanidade interfere na natureza e cria artefatos para seu uso. Por isso FREIRE (1965) falou, como vimos, em “cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez”. Com isso,  a humanidade toma e transforma objetos e matérias da natureza.

Considerando que a humanidade evoluiu com o passar dos séculos, fica evidente que a cultura não é algo estático. Por isso Freire fala em “aquisição sistemática da experiência humana”. E dá importância ao modo como cada pessoa, enquanto assimila conhecimentos e hábitos de nosso grupo, também é capaz de fazer crítica, ou seja, trabalha para modificar certas coisas com as quais não concorda, ou que considera que possam ser melhoradas. Mudamos objetos, mas mudamos também coisas imateriais como as concepções e modos de pensar e agir. O ato criador envolve fazer mudanças. Mudamos em nós, e podemos cultivar mudanças que passarão a ser do grupo. Por isso Freire aponta a capacidade de cada pessoa de ser crítica e criadora. Dessa maneira, a cultura não é vista somente como algo a ser assimilado, mas algo que podemos discutir, refletir, e modificar.

As criações e críticas não são construídas individualmente e isoladamente. Quando as pessoas trocam ideias, tudo é melhor. Dai a necessidade de se comunicar. Uma pessoa quer conversar com a outra e por isso surgiram as línguas e linguagens. Também a escrita, é um artefato da comunicação. Pela escrita podemos ler o que escreveram pessoas que já morreram. Podemos nos comunicar com pessoas que nem conhecemos pessoalmente, como é o caso dos livros, e mais recentemente de textos disponibilizados pela internet. Existe um enorme acervo de escritas da humanidade ao qual podemos ter acesso. E por isso o aprendizado da escrita e da leitura é visto como "uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto." (FREIRE, 1965, p.109).  Se olhássemos para a cultura somente como um padrão a ser assimilado, estaríamos desprezando as possibilidades de evolução do grupo humano.

Como imaginar uma pessoa que participe de verdade da cultura humana, ou de seu grupo social, e que não lê, ou que não escreve? E como imaginar alguém que pensa, cria, critica, mas não lê e não escreve? Certamente sua capacidade de comunicação fica bastante prejudicada. Apesar de que, cada vez mais, encontramos comunicações orais que são disponibilizadas em forma de vídeo ou áudio pela internet. Isso vem ampliando as capacidades de comunicação social de analfabetos, e também alterando bastante os modos como a humanidade se comunica. Mas é algo recente e que devemos aguardar para compreender melhor seu alcance e limitações.

Somente os homens são seres da práxis – ou refletem sobre o que estão fazendo, sobre como estão vivendo, como uns se relacionam com os outros. As pessoas se comunicam e assim as reflexões passam a ser coletivas e compartilhadas. A partir das reflexões, individuais e coletivas, são feitos planos para agir de forma diferente, para modificar a ação humana sobre o mundo, e sobre a natureza. Assim, a ação humana é consequência dessa reflexões, ou teorizações.

Teoriza-se sobre o mundo, natureza e sociedade, e busca-se uma forma de ação que possa incorporar o conhecimento que há na teorização. Humanizar-se é saber o mundo e pensar sobre como agir nele e como estar nele. Para falar da cultura, Freire compara a humanidade aos animais.

A diferença entre os dois, entre o animal, cuja atividade, porque não constitui “atos-limites”, não resulta uma produção mais além de si e os homens que, através de sua ação sobre o mundo, criam o domínio da cultura e da história, está em que somente estes são seres da práxis. Somente estes são práxis. Práxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem práxis, não implica em criação, a transformação exercida pelos homens implica.
E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias, suas concepções. (FREIRE, 1970, p. 92)


Em Educação como Prática da Liberdade, que é um livro anterior, Freire também fala sobre o que entende por cultura, e sobre como a participação cultural nos faz diferentes dos animais, e por isso é vista como uma hominização, ou humanização. Vejamos o que diz dos animais de depois das pessoas:

Os contatos, por outro lado, modo de ser próprio da esfera animal, implicam, ao contrário das relações, em respostas singulares, reflexas e não reflexivas e culturalmente inconseqüentes. Deles resulta a acomodação, não a integração. Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado ou ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita — e isso é o mais doloroso — em nome de sua própria libertação. (FREIRE, 1965, p. 43)

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em ternos de relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.

E o fará melhor, toda vez que, integrando-se ao espírito delas, se aproprie de seus temas fundamentais, reconheça suas tarefas concretas. Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se. — “Libertou-se — diz Fromm — dos vínculos exteriores que o impediam de trabalhar e pensar de acordo com o que havia considerado adequado. Agora — continua — seria livre de atuar segundo sua própria vontade, se soubesse o que quer, pensa e sente. Mas não sabe. Ajusta-se (o grifo é nosso) ao mandado de autoridades anônimas e adota um eu que não lhe pertence. Quanto mais procede deste modo, tanto mais se sente forçado a conformar sua conduta à expectativa alheia. Apesar de seu disfarce de iniciativa e otimismo, o homem moderno está esmagado por um profundo sentimento de impotência que o faz olhar fixamente e, como que paralisado, para as catástrofes que se avizinham. (FREIRE, 1965, p. 44)

Como vemos, já em 1965 FREIRE falava de coisas que parecem ser de hoje. Falava da pessoa do tempo moderno, que sente-se impotente e paralisada diante da complexidade da sociedade, e das manipulações que chegam pelas comunicações de massa (ou publicidade organizada), pessoa que acaba sucumbindo à acomodação, incapaz de realizar a crítica e atuar de forma criativa. Mas falava ele, e falamos nós, não por concordar com esse determinismo social, mas por entender que é preciso dessa consciência para libertar-se. Por isso seu livro foi chamado de Educação como Prática da Liberdade. Libertar-se no sentido da pessoa ganhar conhecimento e condições que lhe permitam ter forças para pensar por si mesma.

Isso nos dá esperança nas lutas pela transformação social na busca da conciliação entre humanidade e natureza.

A pessoa que só assimila a cultura, que se considera desimportante para as mudanças sociais, e não faz crítica nem propõe ações criadoras é como um animal, está deixando de usar seu lado humano.

Veja também da questão 4 em diante em <https://celsovallin.blogspot.com/2013/07/cortella-2003.html>. Lá existem questões e respostas que se referem a um texto de Cortella.


REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro : Ed. Paz e Terra. 1965/1969(2a edição).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970/1987(21a Edição).
LARAIA, Roque B., Cultura: um conceito antropológico— Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986/2001(14a Edição).