SORRIA,
AME E ABRACE
Celso
Vallin, 2019
Sorria sempre. Ame muito. Abrace bastante! Mas não seja ingenuo/a e
observe que a lógica capitalista pode atrapalhar a sua vida.
Muita coisa já foi dita sobre o capitalismo, mas para mim, duas
coisas incomodam mais. A primeira pode estar em nós mesmos, quando
somos individualistas, ou queremos ganhar dos outros - é a
competitividade. Em outro artigo escrevi sobre isso e a falta de
tempo ou correria, que vem do produtivismo. E também sobre a
padronização e a modernização (VALLIN, 2016). O jeito de pensar
capitalista é algo que nos empurra sempre a ter que tirar o maior
proveito de tudo. Parece que se fizermos alguma coisa, de um modo que
seja só razoável, não serve. Para ter valor precisa ser dentro da
técnica, otimizado, do melhor jeito possível. A segunda coisa que
incomoda mais, talvez não seja tão percebida: são os atalhos e
ilicitudes tomados por pessoas e empresas que têm um grande controle
sobre a sociedade e a economia.
Falamos sobre fazer algo. Sim, mas do que estamos falando?
Trata-se da produção de bens na sociedade, bens que usamos para
viver, ou para ganhar dinheiro. Pode ser um trabalho como empregado,
ou o caso de quem trabalha por conta própria, sozinho ou tendo
empregados.
O valor em dinheiro é usado para medir o que foi produzido: a
produção de bens e serviços. Chamam de economia o conjunto de
todos os dinheiros e movimentações. A economia irá abranger quase
tudo oque é feito. Existe um setor da economia que é chamado de
'primário'. Nesse setor estão os trabalhos que rendem dinheiro
pegando coisas da natureza, como as matérias-primas. Há o exemplo
do petróleo, que vem de baixo da terra e serve para fazer gasolina,
ou óleo diesel e fazer os veículos andarem. A matéria-prima pode
vir de um vegetal, como a madeira de árvores, que pode ser usada
para fazer móveis ou papel. No setor primário existem coisas que
são pegas do jeito que estão na natureza: minerais, vegetais... E
há coisas que são cultivadas. A agricultura faz parte do setor
primário da economia.
O setor chamado de secundário é a indústria. Nela, as
matérias-primas são transformadas em produtos diferentes. Temos
indústrias de coisas simples como o óleo de coco, um sabonete ou
uma pasta de dentes, e temos indústrias de máquinas pesadas, como
os tratores que servirão para construir estradas. A construção
civil, de estradas, ou de prédios, também faz parte do setor
secundário da economia.
O setor terciário abrange o comércio, que envolve a troca de
produtos, e os serviços. Esses podem ser muito diferentes uns dos
outros, como o serviços profissionais de uma manicure, de um
eletricista, de educação, ou na medicina. Os serviços de
telemarketing ou de entregador também estão no ramo terciário da
economia.
Assim, a economia abrange quase tudo o que se faz por ai visando
ganhar um dinheiro.
No início dessa conversa eu disse que via duas coisas que
incomodavam mais, no pensamento capitalista. Vamos agora à segunda:
os atalhos e ilicitudes.
Dizem que o capitalismo defende a liberdade econômica. Mas isso
torna-se mentira quando encontram meios para eliminar a concorrência.
Se uma empresa grande mata ou sufoca as pequenas não há liberdade.
Se as condições da disputa são muito desiguais, que liberdade é
essa? Dowbor (2014) fala da "cartelização (monopsônios ou
oligopsônios no jargão econômico)". Naquele outro ensaio
falei da corrupção, sonegação de impostos, do controle das
eleições pelo poder econômico, da conquista de leis e uso do
Estado a favor da 'classe dominante' , com isenção de impostos
(VALLIN, 2016). Poderíamos citar ainda a liberação (por meio de
mudança de leis) de exigências de proteção da natureza e de
garantias para setores historicamente oprimidos.
Agora quero refletir um pouco sobre situações criadas no mercado
para que mega empresários tenham mais poder, controle, e assim
recebam gordas quantias de dinheiro, enquanto que os que trabalham e
os pequenos produtores recebam pouco. Trata-se de ganharem dinheiro
em cima do trabalho de outras pessoas sem repartir com elas o
resultado dos trabalhos de forma justa.
Ladislau Dowbor fala que existem mega empresas assim, relativamente
poucas, no cenário mundial, que geralmente estão instaladas em
'paraísos fiscais', usam 'nomes fictícios', praticam 'evasão
fiscal', fazem 'lavagem de dinheiro de drogas', venda não declarada
de armas, e corrupção. São empresas que se ocupam com a
intermediação e controle de mercado. Fala de um 'limbo jurídico'
diante da internacionalidade em que se colocam. Para ele:
as cadeias produtivas tornam-se cada vez mais
complexas, com diversas etapas da produção pertencendo
frequentemente a diferentes grupos econômicos, e situados em
diferentes regiões ou países. Entre a base produtiva e o consumidor
final, acumulam-se diferentes níveis de intermediação comercial,
financeira e jurídica, obscurecendo como as diversas etapas da
cadeia produtiva se refletem no valor agregado e no preço do produto
(DOWBOR, 2014)
A cadeia produtiva começa lá na matéria prima, no setor primário
da economia, e segue para a transformação pela indústria (setor
secundário), e vai até o terciário onde encontramos o comércio de
atacado, para depois chegar ao varejo que vende para o consumidor
final. Quando essa cadeia está dispersa em vários países, e em
várias empresas, tudo fica mais complexo.
Os valores que se encontram nos paraísos fiscais são enormes.
Pesquisas falam que está "entre 21 e 32 trilhões de
dólares, para um PIB da ordem de 70 trilhões, ou seja, algo entre
um terço e metade do PIB mundial" (DOWBOR, 2014).
Dowbor mostra a situação do café, para exemplificar uma relação
totalmente desequilibrada entre produtores, trabalhadores e
intermediários. Com um gráfico mostra que o valor obtido pelo
produtor primário de café é 14 centavos de dolar. Os preços para
colocação no porto, descarga no destino, e após processamento na
fábrica são menores ou igual a 2 dolares cada um. Por outro lado,
quando segue para a prateleira do supermercado o preço aumenta para
26, e finalmente o preço sob forma de café para consumo se torna 42
dolares. Vejamos o que foi colocado:
Ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para
o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados
produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte,
processamento) a participação no valor que o consumidor final paga
ainda é muito pequena. O imenso salto se dá no preço na gôndola
do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E
outro salto se dá no 'when made into coffee', ou seja, quando é
servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas
pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da
lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos
(DOWBOR, 2014, p. 8).
Ele se queixa ainda que existem poucos ou nenhum estudo para mostrar
em que elo da cadeia produtiva o preço está sendo aumentado, para
os diversos produtos que consumimos. O fato é que existe um setor da
economia que gira por cima dos três setores. Não existe acordo
sobre um ramo quaternário da economia, mas eu vejo isso como um
jeito diferente de ganhar dinheiro, que parece não se encaixar em
nenhum desses anteriores, e eu arriscaria até chamar de setor
quaternário. Esses são negócios que não produzem nada. Servem
para organizar serviços e trabalhos de vários setores. Trarei
outros 2 exemplos concretos para refletirmos sobre o que estamos
falando.
O primeiro exemplo é sobre uma empresa que controla a produção de
eucalipto. O eucalipto é uma árvore plantada, e depois cortada, e
sua madeira serve para fazer papel ou móveis. Hoje existe um produto
que imita madeira, que é o MDF. Ele é comprado em placas e usado
pela indústria para fazer móveis de todo tipo. Difícil que não
tenha um móvel de MDF e um pedaço de papel ai, perto de você! Mas
vamos voltar à empresa que controla a produção de eucalipto. Essa
empresa não faz nada e ao mesmo tempo faz tudo - influencia na
cadeia produtiva de ponta a ponta. Começa por um contrato de
parceria, que é feito junto a quem tem um pedaço de terra. É
oferecido o plantio de eucalipto na terra da pessoa, informando que
não precisará fazer nada, nenhum trabalho, é só assinar o
contrato e pegar o dinheiro no final. Como isso funciona? O eucalipto
será plantado, cuidado durante o crescimento, colhido, transportado,
vendido. No final a venda renderá certa quantia de dinheiro. Serão
descontados os custos de produção e restará o lucro. Uma parte do
lucro ficará com essa super empresa que controla o plantio de
eucalipto e o restante ficará para o dono da terra. Parece simples.
Não é? Mas precisamos falar de alguns detalhes. As mudas para
plantio, vêm de um viveiro que fornece para todas
as partes do Brasil. Esse viveiro é como uma indústria de mudas.
Elas saem aos milhares, todos os dias. E são transportadas até chegar em outro estado, e município. Os
trabalhos necessários à plantação de eucalipto, em geral, são dados a empresas
terceirizadas, que contratam empresas intermediárias. Essas usam trabalhadores contratados por produção, alguns com contratos temporários e precários. O preparo da
terra, com tratores; o plantio das mudas; a aplicação de veneno
contra as formigas; a poda após certo tempo de crescimento; o corte
e preparação para o transporte ao final de 6 anos; o transporte; a
venda: tudo o que for preciso é resolvido por contratações
localizadas e tratado como prestação de serviços. Existem empresas, que são também parceiras desse sistema, que são contratadas para
cada trabalho diferente. Tudo é pago conforme o tamanho do
trabalho/resultado que se espera. Os pagamentos advém de um
financiamento, uma dívida. Assim, a empresa de controle da produção
de eucaliptos não é dona da terra, não produz mudas, não faz o
plantio nem o controle de formigas, mas contrata empresas para tudo.
O que essa mega empresa faz, é a contratação e o gerenciamento de
toda a cadeia produtiva. E mais, tem o controle de tudo e consegue
interferir e determinar os preços.
Qual o setor da economia de uma empresa como essa? Poderia ser todos
os setores, visto que no primário há a agricultura, no setor
secundário vemos a indústria que recebe os eucaliptos e os
transforma em MDF ou papel. No setor terciário temos o plantio e a
colheita, e ainda os serviços, de aplicação de veneno, ou de
transporte de toras. Essa empresa que atua em todos os setores
(1ário/2ário/3ário) da cadeia produtiva do eucalipto, ao mesmo
tempo, terceiriza tudo para outras empresas e pessoas e assim, não
está em nenhum setor diretamente, não há nenhum trabalho que
dependa dela. Eu classificaria como uma empresa de controle e
especulação. Isso porque ela tem o controle do processo de ponta a
ponta e por isso consegue ter o controle dos preços e dos
pagamentos. Esse tipo de atividade subordina todas as demais e gera
uma dependência. É o que estou chamando de setor quaternário da
economia.
O segundo exemplo é o Uber. A empresa proprietária do Uber é a
Google. Mas ela não é proprietária de nenhum automóvel que preste
serviço. Nem os motoristas que prestam esse serviço são empregados
dela. Ao menos, não têm os direitos trabalhistas como se fossem
empregados. O que faz a Google no serviço de Uber? Ela controla
todos os serviços de ponta a ponta. Tem o controle dos carros
disponíveis, e tem os consumidores em seu aplicativo. Um só
consegue chegar ao outro se passar pelo seu aplicativo. A Uber recebe
o pagamento do usuário e repassa com certo desconto ao motorista.
Ela recebe uma parte, sem ser motorista, sem ter automóvel, sem
arriscar nada. Hoje fala-se em Uberização na economia. São outras
empresas que atuam de modo semelhante ao da Uber. Eu entendo que é
um sistema quaternário, em que a empresa consegue tomar para si o
controle de toda cadeia produtiva até o usuário final, colocando
todos em sua dependência e assim consegue controlar os preços, e
lucrar sem ter empregados e sem ter maquinário ou meios de produção.
Pouco importa se chamaremos de quaternário, ou se terá um nome
especial. O que importa é que grande parte da produção de bens
mundial está subordinada a essas mega empresas, grupos
empresariais, corporações, em negociações não explicitadas,
escondidas, dispersas em vários países, em várias instituições,
e que controlam o trabalho, os preços e os ganhos de toda gente. Não
é o capitalismo clássico, mas uma coisa pior, mais difícil. De
modo próximo ao que afirmou Dowbor, para nós isso vai além da
ideia do 'lucro' do empresariado, que paga aos trabalhadores menos do
que o valor obtido. Vai além do dilema original do capitalismo.
Existe uma apropriação de valor muito maior que se dá pelo grupo
que controla a cadeia produtiva. Tanto trabalhadores quanto pequenos
proprietários ficam dependentes desses mega-esquemas que lhes tomam
o trabalho, que lucram em cima do trabalho deles. Nessa fragilidade
existe algo em comum entre classe trabalhadora e pequenos
empresários: ambos perdem muito para as megacorporações. Em
Capitalismo Dependente, Florestan Fernandes mostra como,
historicamente, essa situação foi se formando. Escreveu seu estudo
em 1973, portanto, antes de existir as articulações do
neoliberalismo. Naqueles tempos falava de 'capitalismo corporativo ou
monopolista'.
Para nos contrapor e criar possibilidades fora desse frenesi de
querer sempre mais, com competições desiguais, que tiram do
trabalho dos outros, é preciso compreender.
REFERÊNCIAS
DOWBOR,
Ladislau. Produtores,
Intermediários e Consumidores:
o enfoque da cadeia de preços. Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, n.
3, p. 7-16, jul-set, 2014. Disponível em
<https://ren.emnuvens.com.br/ren/article/view/115/94>. Acesso
em 2019.10.19
VALLIN,
Celso. Farinhada
comunitária.
In: I Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo. Belo
Horizonte, MG : FAE, UFMG, 2016. Disponível em
<https://www.simposioedumarx.com.br/edicao-atual>. Acesso em
2018.08.13; Ver também em
<https://celsovallin.blogspot.com/search?q=farinhada>