sábado, 19 de outubro de 2019


SORRIA, AME E ABRACE

Celso Vallin, 2019

Sorria sempre. Ame muito. Abrace bastante! Mas não seja ingenuo/a e observe que a lógica capitalista pode atrapalhar a sua vida.
Muita coisa já foi dita sobre o capitalismo, mas para mim, duas coisas incomodam mais. A primeira pode estar em nós mesmos, quando somos individualistas, ou queremos ganhar dos outros - é a competitividade. Em outro artigo escrevi sobre isso e a falta de tempo ou correria, que vem do produtivismo. E também sobre a padronização e a modernização (VALLIN, 2016). O jeito de pensar capitalista é algo que nos empurra sempre a ter que tirar o maior proveito de tudo. Parece que se fizermos alguma coisa, de um modo que seja só razoável, não serve. Para ter valor precisa ser dentro da técnica, otimizado, do melhor jeito possível. A segunda coisa que incomoda mais, talvez não seja tão percebida: são os atalhos e ilicitudes tomados por pessoas e empresas que têm um grande controle sobre a sociedade e a economia.
Falamos sobre fazer algo. Sim, mas do que estamos falando?
Trata-se da produção de bens na sociedade, bens que usamos para viver, ou para ganhar dinheiro. Pode ser um trabalho como empregado, ou o caso de quem trabalha por conta própria, sozinho ou tendo empregados.
O valor em dinheiro é usado para medir o que foi produzido: a produção de bens e serviços. Chamam de economia o conjunto de todos os dinheiros e movimentações. A economia irá abranger quase tudo oque é feito. Existe um setor da economia que é chamado de 'primário'. Nesse setor estão os trabalhos que rendem dinheiro pegando coisas da natureza, como as matérias-primas. Há o exemplo do petróleo, que vem de baixo da terra e serve para fazer gasolina, ou óleo diesel e fazer os veículos andarem. A matéria-prima pode vir de um vegetal, como a madeira de árvores, que pode ser usada para fazer móveis ou papel. No setor primário existem coisas que são pegas do jeito que estão na natureza: minerais, vegetais... E há coisas que são cultivadas. A agricultura faz parte do setor primário da economia.
O setor chamado de secundário é a indústria. Nela, as matérias-primas são transformadas em produtos diferentes. Temos indústrias de coisas simples como o óleo de coco, um sabonete ou uma pasta de dentes, e temos indústrias de máquinas pesadas, como os tratores que servirão para construir estradas. A construção civil, de estradas, ou de prédios, também faz parte do setor secundário da economia.
O setor terciário abrange o comércio, que envolve a troca de produtos, e os serviços. Esses podem ser muito diferentes uns dos outros, como o serviços profissionais de uma manicure, de um eletricista, de educação, ou na medicina. Os serviços de telemarketing ou de entregador também estão no ramo terciário da economia.
Assim, a economia abrange quase tudo o que se faz por ai visando ganhar um dinheiro.
No início dessa conversa eu disse que via duas coisas que incomodavam mais, no pensamento capitalista. Vamos agora à segunda: os atalhos e ilicitudes.
Dizem que o capitalismo defende a liberdade econômica. Mas isso torna-se mentira quando encontram meios para eliminar a concorrência. Se uma empresa grande mata ou sufoca as pequenas não há liberdade. Se as condições da disputa são muito desiguais, que liberdade é essa? Dowbor (2014) fala da "cartelização (monopsônios ou oligopsônios no jargão econômico)". Naquele outro ensaio falei da corrupção, sonegação de impostos, do controle das eleições pelo poder econômico, da conquista de leis e uso do Estado a favor da 'classe dominante' , com isenção de impostos (VALLIN, 2016). Poderíamos citar ainda a liberação (por meio de mudança de leis) de exigências de proteção da natureza e de garantias para setores historicamente oprimidos.
Agora quero refletir um pouco sobre situações criadas no mercado para que mega empresários tenham mais poder, controle, e assim recebam gordas quantias de dinheiro, enquanto que os que trabalham e os pequenos produtores recebam pouco. Trata-se de ganharem dinheiro em cima do trabalho de outras pessoas sem repartir com elas o resultado dos trabalhos de forma justa.
Ladislau Dowbor fala que existem mega empresas assim, relativamente poucas, no cenário mundial, que geralmente estão instaladas em 'paraísos fiscais', usam 'nomes fictícios', praticam 'evasão fiscal', fazem 'lavagem de dinheiro de drogas', venda não declarada de armas, e corrupção. São empresas que se ocupam com a intermediação e controle de mercado. Fala de um 'limbo jurídico' diante da internacionalidade em que se colocam. Para ele:
as cadeias produtivas tornam-se cada vez mais complexas, com diversas etapas da produção pertencendo frequentemente a diferentes grupos econômicos, e situados em diferentes regiões ou países. Entre a base produtiva e o consumidor final, acumulam-se diferentes níveis de intermediação comercial, financeira e jurídica, obscurecendo como as diversas etapas da cadeia produtiva se refletem no valor agregado e no preço do produto (DOWBOR, 2014)
A cadeia produtiva começa lá na matéria prima, no setor primário da economia, e segue para a transformação pela indústria (setor secundário), e vai até o terciário onde encontramos o comércio de atacado, para depois chegar ao varejo que vende para o consumidor final. Quando essa cadeia está dispersa em vários países, e em várias empresas, tudo fica mais complexo.
Os valores que se encontram nos paraísos fiscais são enormes. Pesquisas falam que está "entre 21 e 32 trilhões de dólares, para um PIB da ordem de 70 trilhões, ou seja, algo entre um terço e metade do PIB mundial" (DOWBOR, 2014).
Dowbor mostra a situação do café, para exemplificar uma relação totalmente desequilibrada entre produtores, trabalhadores e intermediários. Com um gráfico mostra que o valor obtido pelo produtor primário de café é 14 centavos de dolar. Os preços para colocação no porto, descarga no destino, e após processamento na fábrica são menores ou igual a 2 dolares cada um. Por outro lado, quando segue para a prateleira do supermercado o preço aumenta para 26, e finalmente o preço sob forma de café para consumo se torna 42 dolares. Vejamos o que foi colocado:
Ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena. O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no 'when made into coffee', ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos (DOWBOR, 2014, p. 8).
Ele se queixa ainda que existem poucos ou nenhum estudo para mostrar em que elo da cadeia produtiva o preço está sendo aumentado, para os diversos produtos que consumimos. O fato é que existe um setor da economia que gira por cima dos três setores. Não existe acordo sobre um ramo quaternário da economia, mas eu vejo isso como um jeito diferente de ganhar dinheiro, que parece não se encaixar em nenhum desses anteriores, e eu arriscaria até chamar de setor quaternário. Esses são negócios que não produzem nada. Servem para organizar serviços e trabalhos de vários setores. Trarei outros 2 exemplos concretos para refletirmos sobre o que estamos falando.
O primeiro exemplo é sobre uma empresa que controla a produção de eucalipto. O eucalipto é uma árvore plantada, e depois cortada, e sua madeira serve para fazer papel ou móveis. Hoje existe um produto que imita madeira, que é o MDF. Ele é comprado em placas e usado pela indústria para fazer móveis de todo tipo. Difícil que não tenha um móvel de MDF e um pedaço de papel ai, perto de você! Mas vamos voltar à empresa que controla a produção de eucalipto. Essa empresa não faz nada e ao mesmo tempo faz tudo - influencia na cadeia produtiva de ponta a ponta. Começa por um contrato de parceria, que é feito junto a quem tem um pedaço de terra. É oferecido o plantio de eucalipto na terra da pessoa, informando que não precisará fazer nada, nenhum trabalho, é só assinar o contrato e pegar o dinheiro no final. Como isso funciona? O eucalipto será plantado, cuidado durante o crescimento, colhido, transportado, vendido. No final a venda renderá certa quantia de dinheiro. Serão descontados os custos de produção e restará o lucro. Uma parte do lucro ficará com essa super empresa que controla o plantio de eucalipto e o restante ficará para o dono da terra. Parece simples. Não é? Mas precisamos falar de alguns detalhes. As mudas para plantio, vêm de um viveiro que fornece para todas as partes do Brasil. Esse viveiro é como uma indústria de mudas. Elas saem aos milhares, todos os dias. E são transportadas até chegar em outro estado, e município. Os trabalhos necessários à plantação de eucalipto, em geral, são dados a empresas terceirizadas, que contratam empresas intermediárias. Essas usam trabalhadores contratados por produção, alguns com contratos temporários e precários. O preparo da terra, com tratores; o plantio das mudas; a aplicação de veneno contra as formigas; a poda após certo tempo de crescimento; o corte e preparação para o transporte ao final de 6 anos; o transporte; a venda: tudo o que for preciso é resolvido por contratações localizadas e tratado como prestação de serviços. Existem empresas, que são também parceiras desse sistema, que são contratadas para cada trabalho diferente. Tudo é pago conforme o tamanho do trabalho/resultado que se espera. Os pagamentos advém de um financiamento, uma dívida. Assim, a empresa de controle da produção de eucaliptos não é dona da terra, não produz mudas, não faz o plantio nem o controle de formigas, mas contrata empresas para tudo. O que essa mega empresa faz, é a contratação e o gerenciamento de toda a cadeia produtiva. E mais, tem o controle de tudo e consegue interferir e determinar os preços.
Qual o setor da economia de uma empresa como essa? Poderia ser todos os setores, visto que no primário há a agricultura, no setor secundário vemos a indústria que recebe os eucaliptos e os transforma em MDF ou papel. No setor terciário temos o plantio e a colheita, e ainda os serviços, de aplicação de veneno, ou de transporte de toras. Essa empresa que atua em todos os setores (1ário/2ário/3ário) da cadeia produtiva do eucalipto, ao mesmo tempo, terceiriza tudo para outras empresas e pessoas e assim, não está em nenhum setor diretamente, não há nenhum trabalho que dependa dela. Eu classificaria como uma empresa de controle e especulação. Isso porque ela tem o controle do processo de ponta a ponta e por isso consegue ter o controle dos preços e dos pagamentos. Esse tipo de atividade subordina todas as demais e gera uma dependência. É o que estou chamando de setor quaternário da economia.
O segundo exemplo é o Uber. A empresa proprietária do Uber é a Google. Mas ela não é proprietária de nenhum automóvel que preste serviço. Nem os motoristas que prestam esse serviço são empregados dela. Ao menos, não têm os direitos trabalhistas como se fossem empregados. O que faz a Google no serviço de Uber? Ela controla todos os serviços de ponta a ponta. Tem o controle dos carros disponíveis, e tem os consumidores em seu aplicativo. Um só consegue chegar ao outro se passar pelo seu aplicativo. A Uber recebe o pagamento do usuário e repassa com certo desconto ao motorista. Ela recebe uma parte, sem ser motorista, sem ter automóvel, sem arriscar nada. Hoje fala-se em Uberização na economia. São outras empresas que atuam de modo semelhante ao da Uber. Eu entendo que é um sistema quaternário, em que a empresa consegue tomar para si o controle de toda cadeia produtiva até o usuário final, colocando todos em sua dependência e assim consegue controlar os preços, e lucrar sem ter empregados e sem ter maquinário ou meios de produção.
Pouco importa se chamaremos de quaternário, ou se terá um nome especial. O que importa é que grande parte da produção de bens mundial está subordinada a essas mega empresas, grupos empresariais, corporações, em negociações não explicitadas, escondidas, dispersas em vários países, em várias instituições, e que controlam o trabalho, os preços e os ganhos de toda gente. Não é o capitalismo clássico, mas uma coisa pior, mais difícil. De modo próximo ao que afirmou Dowbor, para nós isso vai além da ideia do 'lucro' do empresariado, que paga aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Vai além do dilema original do capitalismo. Existe uma apropriação de valor muito maior que se dá pelo grupo que controla a cadeia produtiva. Tanto trabalhadores quanto pequenos proprietários ficam dependentes desses mega-esquemas que lhes tomam o trabalho, que lucram em cima do trabalho deles. Nessa fragilidade existe algo em comum entre classe trabalhadora e pequenos empresários: ambos perdem muito para as megacorporações. Em Capitalismo Dependente, Florestan Fernandes mostra como, historicamente, essa situação foi se formando. Escreveu seu estudo em 1973, portanto, antes de existir as articulações do neoliberalismo. Naqueles tempos falava de 'capitalismo corporativo ou monopolista'.
Para nos contrapor e criar possibilidades fora desse frenesi de querer sempre mais, com competições desiguais, que tiram do trabalho dos outros, é preciso compreender.


REFERÊNCIAS
DOWBOR, Ladislau. Produtores, Intermediários e Consumidores: o enfoque da cadeia de preços. Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, n. 3, p. 7-16, jul-set, 2014. Disponível em <https://ren.emnuvens.com.br/ren/article/view/115/94>. Acesso em 2019.10.19
VALLIN, Celso. Farinhada comunitária. In: I Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo. Belo Horizonte, MG : FAE, UFMG, 2016. Disponível em <https://www.simposioedumarx.com.br/edicao-atual>. Acesso em 2018.08.13; Ver também em <https://celsovallin.blogspot.com/search?q=farinhada>