segunda-feira, 6 de novembro de 2023

INDISCIPLINA: MEIO SÉCULO DE MUDANÇAS SOCIAIS QUE INTERFEREM NA ESCOLA

INDISCIPLINA: MEIO SÉCULO DE MUDANÇAS SOCIAIS
QUE INTERFEREM NA ESCOLA


Celso Vallin (2019)


INTRODUÇÃO


Quando falamos com professoras sobre problemas da escola, e temas que gostariam de estudar, é comum apontarem a indisciplina. Um dia, já se foram alguns anos, eu tinha um bom conjunto de temas que já havia estudado e queria ensinar, mas não havia ainda pensado na indisciplina. Ensinar para professores é Formação Continuada de Professores (FCP), o mesmo que educação permanente, ou formação em serviço. Tem gente que chama de capacitação, mas pelas ideias de Paulo Freire, que eu gosto, não é bom querer passar algo que já esteja pronto. Aprender deve ser como uma construção do saber em que a pessoa entra com sua parte. E nesse caso olhamos para professores em educação como gente que já é capaz, já é capacitada, mas que pode aprender mais. Quando falam atualização, também é ruim. Dá a impressão que a pessoa precisa de conhecimento novo, como se o conhecimento fosse um produto de consumo, que de tempos em tempos precisasse ser trocado por algo mais atual. Reciclagem é outro termo ruim. Melhor dizer FCP. Para Freire (1996), conhecimento não é algo que possa ser transferido. Um educador não pode ser uma pessoa que fica só narrando o conteúdo (FREIRE, 1987), que se compõe de informações, conceituações, explicações, processos, posturas atitudinais. Isso vale para a FCP e também para as aulas que professores da educação básica farão. Educar será então a busca de relações entre o que se quer ensinar/aprender, com temas e situações que emergem como problemáticas do cotidiano. Temos que abrir espaço para que educandos digam o que os aflige, e o que estão querendo estudar. E foi assim que professoras disseram que queriam estudar a indisciplina.

Esse artigo foi escrito a partir de dados de uma oficina sobre indisciplina. Trata-se de uma pesquisa que se propôs a investigar possíveis estratégias que professores podem utilizar para lidar com os conflitos decorrentes das condutas de estudantes, que são consideradas como indisciplinas pela escola. (YOSHIDA, 2019).



DIALOGICIDADE


Estudando, conversando com professoras e professores, em situações diferentes, lendo autores como GROPPA e ARROYO voltei a FREIRE, e passei a considerar que uma das causas da indisciplina está no próprio jeito de se fazer a aula. Muitas vezes a escola, e as aulas, não fazem sentido para estudantes, porque não conseguem estabelecer relações entre os estudos e suas situações de vida. Dai estudantes apresentam dificuldade para acompanhar a professora, e a aula. É a falta de dialogicidade de que fala Freire (1987). Para ele, "não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo". Por isso, seja na FCP, ou seja em aula da educação básica, educador e educandos devem ser vistos e considerados como sujeitos e por isso, deve-se esperar que tenham a palavra, dita e escutada no coletivo dos estudos, e com ela possam decidir-se a transformar o mundo: incluindo ai as relações sociais e as relacões entre humanidade e natureza. O autor nos diz ainda que:

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo, Existir, humanemente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (FREIRE, 1987, p. 78)

Essa é a ideia de educação crítica, em que não se estuda para repetir, ou para dizer que sabemos, mas para discutir o mundo. Por isso as ideias de educação libertadora, ou educação popular de Paulo Freire (1996) nos fornecem caminhos para evitar ou amenizar os problemas de indisciplina. Em outras palavras - se conseguimos fazer uma aula mais participativa, problematizadora e na qual estudantes e docentes tenham um papel de sujeitos do conhecimento, a aula fará sentido e teremos menos problemas com indisciplina. Diante dessas afirmações, a seguir serão destacas algumas características que podem ajudar a entender como fazer uma educação libertadora.

  • Deseja-se que professor/a conquiste uma posição de autoridade mas não aja com autoritarismo. A autoridade é uma construção que deve supor o trato democrático, exige respeito mútuo. Autoritarismo é o abuso da autoridade, e não constrói a autonomia do sujeito.

  • Para cultivar a autonomia de estudantes é importante trabalhar num ambiente de liberdade, mas isso não deve ser confundido com licenciosidade. É preciso que se converse sobre a importância do coletivo da turma de aula. Os interesses e progressos da turma inteira devem prevalecer sobre as vontades e interesses individuais. A organização do coletivo da turma justifica algumas regras e cuidados que cada pessoa precisa compreender e observar. Não se pensa em obedecer ao professor, mas em respeitar o coletivo, e os acordos coletivos. Conversar sobre as necessidades de organização e funcionamento do coletivo não é algo que atrapalha a aula, mas faz parte dela. As discordâncias, incoerências, e incompreensões devem ser vistas com paciência pois fazem parte do processo de conquista de relações coletivas.

  • Quando se fala de certo tema, as pessoas podem ter na memória fatos, conhecimentos, questionamentos que se relacionem com ele mas isso não está pronto, é algo que precisa ser despertado. A lembrança sobre experiências anteriores que as pessoas tiveram é algo que está adormecido e até meio esquecido. As primeiras atividades dentro de uma temática podem ser pensadas de modo que sirvam para despertar lembranças que irão compor a base de interesse dentro do tema.

  • As pessoas gostam de aprender. É da natureza humana. E assim, certamente haverá interesse pelos conteúdos a serem aprendidos, e ensinados, caso eles sejam problematizados. O interesse precisa ser despertado, a partir de situações presentes. Interesse é algo que pode ser aprofundado, cultivado, desenvolvido. O aprofundamento da curiosidade pode ser realizado pela problematização no tema. Problematização envolve a observação de situações problemáticas, contrariedades e contraposições que envolvam o tema. Por isso é importante problematizar o tema que se deseja estudar. A problematização não deve depender só de coisas que a docência traga prontas, mas pode ser ampliada com a participação de estudantes. Para isso, a aula, e a postura da professora, deve incentivar, valorizar e cultivar o aprofundamento da problematização, feita também por estudantes.

  • As situações práticas e de realidade são ótimas para gerar problematização. A realidade sempre envolve detalhes complexos, envolvimento entre temáticas diferentes, objetos variados. Por isso é importante que sejam previstas atividades práticas, com tempos, situações, e materiais que provoquem estudantes a fazer coisas, lidar com realidades, e construir coisas práticas ligadas ao tema em estudo.

  • A ação sobre as realidades deve ser relatada e refletida, num esforço de comparação com os entendimentos teóricos no tema, e num esforço teorizante. Dessa forma são tecidas relações entre prática e teoria (reflexões teorizantes sobre a prática realizada ou vivida). Também o movimento inverso é necessário, indo da teoria para a prática, realizando ações de aplicação prática das ideias teóricas.

  • A ação de recontar o que foi realizado e aprendido tem o efeito de organização do pensamento. Gera novas descobertas, novas curiosidades, novos enlaçamentos entre teorias e práticas. Recontar ou apresentar a um coletivo de pessoas irá requerer a busca da explicação, e irá nos condicionar e favorecer a organização do pensamento.

Para Freire o diálogo começa na busca do conteúdo programático que faça sentido para estudantes e para as situações presentes que vivem. Educador é aquele que escuta e observa seus estudantes e a eles devolve, de forma organizada e sistematizada, os elementeos que estudantes entregaram de forma desestruturada. A educação se faz junto, educador com educandos, mediatizados pelo mundo e pela leitura crítica de situações e relações com a natureza e sociedade. E por isso mesmo que para atuar bem como professor, ou professora, é preciso observar esse mundo, a sociedade e compreendê-la como ela é. Um grande erro acontece quando se espera que nossos estudantes sejam algo que idealizamos, que sejam como foram as crianças ou jovens de quando éramos estudantes. A sociedade sofreu e sofre mudanças sociais e para lecionar é preciso observar e compreendê-las.



MUDANÇAS SOCIAIS


A indisciplina não depende somente da metodologia de aula. Existe uma certa insatisfação com os fatos e situações presentes que tende a dificultar as relações entre estudantes e docentes. Buscando superar essa insatisfação, vamos agora retomar e analisar certas mudanças sociais que fazem parte de um passado recente. Trata-se de um conjunto de mudanças, sobre as quais, algumas vezes não sabíamos, e algumas vezes, mesmo sabendo, não nos damos conta que isso irá requerer, da aula, novas posturas, pois estamos em situação diferente daquela que foi vivida por gerações anteriores. Grosso modo vamos rever e refletir sobre sete grandes mudanças, que se sobrepõem. Temos duas mudanças nas famílias que refletem no modo como as crianças e jovens são educados: a primeira é relativa aos processos de emancipação da mulher, e a segunda se deve à diminuição da natalidade, e consequente quantidade de irmãos. A terceira é a insegurança urbana que tirou a rua (praças e espaços públicos) das crianças. A quarta vem do estabelecimento dos direitos de crianças e adolescentes, que influenciou na família e na escola. A quinta é uma mudança estritamente escolar: porque agora se quer diminuir as reprovações e exclusões. A sexta é a inclusão de camadas historicamente oprimidas na escola. Finalmente temos os videogames, novas tecnologias digitais como celulares com internet, com fotografia, filmagem e múltiplas funções, além de comunicações entre pessoas por redes sociais digitais. Explicaremos cada uma dessas mudanças sociais, mostrando que elas todas juntas fazem com que tenhamos crianças ou jovens diferentes do que tínhamos antes, o que irá requerer um novo modo de tratar e de se fazer a relação escola estudante. Não queremos dizer que é melhor nem pior. Queremos sim apontar que a idealização de uma realidade que não existe leva a resultados ruins.

(1) A emancipação da mulher é um longo processo que já dura mais de século. Não se pode pensar que a luta acabou porque ainda há desigualdade e situações culturais a serem superadas. Estão ai as baixas porcentagens de mulheres em cargos políticos, em posições de poder nas empresas, e as recentíssimas lei Maria da Penha (de 2006) e a tipificação do crime de feminicídio (lei de 2015) para atestar a gravidade da situação atual. Mas, para recordar de forma breve, a mulher raramente ocupava posições no espaço público. Sua atuação deveria restringir-se ao lar, em casa com a família. Mulher que ficasse solteira era menosprezada, depreciada. A revolução industrial aconteceu na Europa nos anos 1800 e puxou mulheres para o trabalho fora de casa. As guerras mundiais de (1914-1918 e 1939-1945) levaram homens para a frente de batalha e com isso mais mulheres ocuparam posições de responsabilidade para além do lar. No Brasil a mulher só conquista o direito ao voto em 1934. O fato é que com a mulher trabalhando e também vivendo mais fora de casa, mudam os arranjos familiares e nasce a necessidade de haver outras formas da família cuidar dos filhos. As crianças começam a ingressar mais cedo nas escolas: creches, pré-escolas, mas para as famílias mais pobres não existiam vagas públicas. No Brasil, em 2009 conquistamos a escola pública a partir dos 4 anos de idade, e também o ensino médio (até 17 anos), pela Emenda Constitucional 59/09, o que deveria “ser implementado progressivamente, até 2016”. Lembremos que até 2006, quando veio a Lei nº 11.274/2006, só era obrigatório o ensino fundamental, e esse possuía só 8 anos. A conquista de políticas públicas para escolaridade a partir de idades menores já é uma resposta às mudanças, visto que não era mais suficiente deixar as crianças pequenas em casa.

(2) As famílias estão menores devido à grande diminuição da natalidade. Nos anos 1960 e 1970 eram comuns famílias com 5 filhos e em alguns casos havia até 20. A natalidade foi sendo controlada ao longo de décadas, por vários programas e estratégias de governo, de modo que hoje temos uma natalidade bastante mais reduzida no Brasil.

O gráfico a seguir mostra essa queda. É a questão 7 do Enem de 2013 (disponível em http://educacao.globo.com/provas/enem-2013/questoes/7.html>. Acesso em 2019.05.30).




A taxa de fecundidade corresponde ao número total de filhos nascidos dividido pela população de mulheres em idade reprodutiva (15 a 49 anos) naquele ano. Outros dados mostram que essa taxa, no país, caiu para 1,7 em 2015. Ficamos abaixo do nível de reposição populacional que é estimado em 2,2 (Reportagem jornalística disponível em <https://noticias.r7.com/saude/taxa-de-fecundidade-no-brasil-e-baixa-e-esta-em-queda-acelerada-17102018>. Acesso em 2019.05.30). Isso fez com que em grande parte dos lares houvesse duas, ou mesmo só uma criança, o que restringiu as possibilidades de deixar as crianças brincando entre si, visto que muitas não têm irmãos/irmãs. E quando não existem irmãos, depois não haverá tios, e assim, não haverá primos/as. O fato é que as famílias estão muito diferentes, devido a essa queda da natalidade.

(3) Perdemos a rua, ou os espaços públicos tornaram-se inseguros - além da insegurança pelas notícias sobre criminalidade que povoam os noticiários sensacionalistas de TV e rádio, temos o avanço da produção nacional de veículos que passaram a ocupar as ruas tornando-as perigosas para crianças. São mais de sete mil veículos novos fabricados e colocados nas ruas a cada dia! Hoje é raro encontrar algum lugar em que as crianças brincam na rua. Mesmo em cidades menores. Antes a rua era um local de convivência e de aprendizagem social. Isso não está mais disponível.

(4) Com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) mudou o modo de se respeitar a criança. Trata-se de uma lei de 1990 que surgiu depois do período de ditadura civil-militar (1964-1984), quando começou a reconstrução democrática, e foi aprovada a nova Constituição (1988). Mas ainda demorou uma década para a sociedade, em geral, conhecer minimamente o ECA. Muita coisa foi mudando e mudou, como os Conselhos Tutelares que nem existiam. O fato é que a sociedade passa a entender que educar não é compatível com atos violentos, castigos ou opressões. Tanto escola quanto família precisam aprender outras formas de tratar crianças e adolescentes. A geração de nasceu nos anos 2000 já é diferente, pois foi educada dentro do ECA. É uma geração de crianças e jovens que não aceita mais que lhe digam para calar a boca. Sabem que têm direito a falar. Antes se dizia que crianças deveriam respeitar os mais velhos. Mas agora o respeito deve ser recíproco. Quando um adulto desrespeita uma criança ou jovem fica claro que está havendo desrespeito e isso gera reações. Por esse lado podemos entender que temos pessoas mais críticas, mais bem formadas, e também dificuldades, sempre que os mais velhos não entendem essa mudança. Há dificuldades ainda porque, diante da impossibilidade de ser violento, muitas adultos se sentiram inseguros e abriram mão de qualquer tentativa e autoridade. Isso gerou jovens mal orientados. A licenciosidade gera insegurança e indisciplina. Nos anos 1990 houve um movimento de discussões sobre como educar e colocar limites às crianças nesse novo tempo. Vamos citar dois livros, que foram muito recomendados e lidos: “Sem padecer no paraíso, em defesa dos pais ou sobre a tirania dos filhos (Tânia Zagury, 1991), e Disciplina, limite na medida certa (Içami Tiba, 1996).

(5) Reprovação - até os anos 1980 reprovar era legítimo. Grande quantidade de crianças era reprovada no primeiro ano. E reprovam de novo e quantas vezes fosse preciso, mesmo que isso implicasse na criança e família desistirem da escolarização. Por isso muitas nem ingressavam na escola. Era comum pessoas que diziam: "essa coisa de escola não é para mim". A reprovação era naturalizada e os excluídos do sistema escolar até consideravam que o problema fossem eles mesmos. Mas a pedagogia brasileira, e a internacional, passaram a afirmar que qualquer pessoa poderia ser alfabetizada e escolarizada. Buscaram mudanças e passaram a contar com controles para diminuir a reprovação. Ainda temos hoje professores que sentem orgulho por praticar altos índices de reprovação, mas isso acontece mais no ensino superior e não é tão comum como antes. No geral entende-se que, se somos educadores profissionais, temos que descobrir modos para que a aprendizagem aconteça, e as reprovações passaram a representar o fracasso da pedagogia. Em 1991 Sérgio Costa Ribeiro escreve e publica o estudo "A pedagogia da repetência" (RIBEIRO, 1991) no qual mostrou que não era verdade, como diziam, que as crianças abandonavam a escola por motivos de ordem social ou cultural, mas sim que as famílias cuidavam para que seus filhos permanecessem. Mas a escola, através da repetência, expulsava as crianças, principalmente aquelas de segmentos historicamente oprimidos. Em 1982, havia mais da metade das crianças de primeiro ano que eram reprovadas! E as reprovadas estavam entre as que seriam de novo reprovadas, até abandonarem a escola. Conforme podemos conferir o que acontecia é que:

a probabilidade de um aluno novo na 1ª série ser aprovado é quase o dobro do que a probabilidade daquele que já é repetente na série. Isto mostra que a repetência tende a provocar novas repetências, ao contrário do que sugere a cultura pedagógica brasileira de que repetir ajuda a criança a progredir em seus estudos.

Não basta não reprovar. É preciso descobrir formas de ensinar de modo que todas as crianças aprendam.

(6) Inclusão de segmentos sociais historicamente excluídos. Dados mostram que o ensino fundamental (que era de 7 a 14 anos), foi aos poucos incluindo mais gente e passou a atender quase toda a população na faixa etária esperada, chegando a 96% em 1994. Ver tabela a seguir.

O ensino médio e a pré-escola também cresceram em atendimento, mas não tanto.


TAXA DE ATENDIMENTO ESCOLAR POR FAIXA ETÁRIA


de 4 a 6 anos

de 7 a 14 anos

de 15 a 17 anos

1970

9,3

67,1

40,1

1975

12,2

75,0

51,4

1980

19,1

81,1

56,3

1985

28,6

81,8

59,2

1991

41,2

91,6

69,2

1994

48,0

96,2

80,2

Dados (BRASIL.INEP, 1996, p. 5)


Passamos por uns anos em que as famílias mais pobres não encontravam vagas para seus filhos pequenos e não havia leis que assegurassem a educação infantil como direito. As crianças que ingressavam numa escola pela primeira vez aos sete anos já entravam com defasagem, visto que tantas outras já sabiam ao menos segurar um lápis, e outros atributos de base para a alfabetização e escolarização. Havia, como hoje há, crianças que já estão alfabetizadas aos 6 anos ou antes. Isso gera uma dificuldade a mais nos primeiros anos escolares para crianças desfavorecidas e professoras/es, que muitas vezes acaba levando a desajustamentos que perduram ao longo dos anos escolares. Nasce assim a necessidade do Estado assegurar a Educação Infantil como direito para todas as crianças. Mas só em 2009 é conquistada a Emenda Constitucional 59, que fala da obrigatoriedade do Estado assegurar educação dos 4 aos 17 anos. Havia a previsão de implantação progressiva desse direito até 2016, mas sabemos que até hoje o Brasil ainda falha nisso, em muitos municípios.

Antes a escola desatendia muita gente da zona rural, e também de bairros mais pobres em grandes cidades; e pela repetência nas primeiras séries fazia uma seleção de quem permaneceria estudando. Agora, a escola precisa aprender a dialogar também com crianças de famílias pobres, e outras que têm condições de vida mais distantes da escolaridade padrão. Além disso, hoje a escola acolhe crianças com necessidades especiais. São realidades diferentes para as quais nem sempre a escola e docentes estão preparadas.

Com a inclusão de quase todas as crianças, professoras e professores precisam ter maior flexibilidade e maior sensibilidade com as diferenças. Mais um motivo para a escola ser dialógica e crítica.

(7) Desde perto de 1980 a humanidade desenvolve o uso de computadores pessoais e com eles os videogames. Nos anos 1990 a internet começou a popularizar-se. Vieram as imagens e cores. Desde os anos 1970 existem satélites e com eles a telecomunicação progrediu muito. Vieram os telefones móveis que incorporaram o computador e mais - câmeras fotográficas, filmadoras, relógios e múltiplas funções. Em 2005 surge a possibilidade de uma pessoa qualquer produzir e postar vídeos que ficam disponíveis mundialmente. De lá para cá, as redes sociais se multiplicaram e popularizaram. Recentemente as séries de filmes e audiovisuais de produção internacional (transmitidas pela internet) vem sendo mais disponibilizadas em português, e assistidas. Esse movimento das tecnologias digitais foi acontecendo paralelamente às mudanças nas famílias, que passaram a ter filhos que não brincam mais na rua, e quase não têm irmãos. Uma coisa realimenta a outra - tecnologias e mudanças sociais.

Existe um oitavo fator, que foge ao alcance de nossas análises, mas que pode ser motivo de estudos: é o avanço do uso de drogas ilícitas. A droga está em todo lugar, campo e cidade, bairros pobres ou ricos, mas, décadas antes, isso não era apontado como problema. Mesmo sem ter condições para analisar, sabemos que esse é mais um fator de problema e adaptação nas escolas.

Pode-se ainda apontar os avanços do neoliberalismo, que leva ao individualismo e desvalorização do que é comum, à competitividade em detrimento da colaboração, ao cuidado com a aparência que é maior do que o cuidado com a realidade ou a essência, a correria ou produtivismo, e a grande mídia comercial que cria e recria narrativas de mundo para defender interesses de uma minoria. Essas características de organização social geram incoerências que não serão analisadas aqui.

Enfim, acreditamos que foram apresentados muitos dos fatores que estão nas causas da indisciplina, e que uma maior e melhor compreensão desses fatos, características, e lógicas podem colaborar para uma melhoria na relação de aula, e com isso um melhor controle do problema da indisciplina. Para finalizar, devemos considerar que esses fatores enumerados influenciam na aula, e também na relação com estudantes, e portanto, no comportamento disciplinado ou indisciplinado. Assim, entendemos que professores, ou professoras, que queiram aprender sobre a indisciplina, ou disciplina, podem se colocar em discussão e analisar o que foi dito, e considerar o que foi posto, para que, por meio de uma reflexão coletiva e participativa possam chegar a novos entendimentos, que servirão de base para novas posturas docentes em aula. Entendemos ainda que essa reflexão irá ajudar as pessoas a compreender o problema. Porém a construção de novas posturas em aula será um processo longo, que dependerá do cuidado que cada professor, ou cada professora, terá com seu próprio comportamento, e entendemos também que essas pessoas poderão retornar a esse texto, para relembrar aquilo que foi dito logo de início, sobre a autoridade, sobre a dialogicidade, sobre a problematização... Porque é muito mais simples compreender, e muito mais difícil incorporar essas ideias no fazer pedagógico, principalmente quando se trata de uma sala com 30, ou com 40 crianças, ou adolescentes. A situação real de aula é sempre sujeita a variações e surpresas, e irá requerer do professor, ou da professora, uma presença de espírito, uma habilidade na atuação, e uma humildade que nem sempre é fácil de se conseguir.



REFERÊNCIAS

BRASIL.INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Estatísticas da educação básica no Brasil. 1996 (?). Disponível em <http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484154/Estat%C3%ADsticas+da+educa%C3%A7%C3%A3o+b%C3%A1sica+no+Brasil/e2826e0e-9884-423c-a2e4-658640ddff90?version=1.1>. Acesso em 2019.06.02

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.

RIBEIRO, Sérgio C. A pedagogia da repetência. Estud. av., São Paulo , v. 5, n. 12, p. 07-21, Ago. 1991 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141991000200002>. Acesso em 2019.06.02

YOSHIDA, Cinthia. Indisciplina na escola: o que fazer? 2019. 128 p. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação)–Universidade Federal de Lavras, Lavras, 2019.