sábado, 19 de outubro de 2019


SORRIA, AME E ABRACE

Celso Vallin, 2019

Sorria sempre. Ame muito. Abrace bastante! Mas não seja ingenuo/a e observe que a lógica capitalista pode atrapalhar a sua vida.
Muita coisa já foi dita sobre o capitalismo, mas para mim, duas coisas incomodam mais. A primeira pode estar em nós mesmos, quando somos individualistas, ou queremos ganhar dos outros - é a competitividade. Em outro artigo escrevi sobre isso e a falta de tempo ou correria, que vem do produtivismo. E também sobre a padronização e a modernização (VALLIN, 2016). O jeito de pensar capitalista é algo que nos empurra sempre a ter que tirar o maior proveito de tudo. Parece que se fizermos alguma coisa, de um modo que seja só razoável, não serve. Para ter valor precisa ser dentro da técnica, otimizado, do melhor jeito possível. A segunda coisa que incomoda mais, talvez não seja tão percebida: são os atalhos e ilicitudes tomados por pessoas e empresas que têm um grande controle sobre a sociedade e a economia.
Falamos sobre fazer algo. Sim, mas do que estamos falando?
Trata-se da produção de bens na sociedade, bens que usamos para viver, ou para ganhar dinheiro. Pode ser um trabalho como empregado, ou o caso de quem trabalha por conta própria, sozinho ou tendo empregados.
O valor em dinheiro é usado para medir o que foi produzido: a produção de bens e serviços. Chamam de economia o conjunto de todos os dinheiros e movimentações. A economia irá abranger quase tudo oque é feito. Existe um setor da economia que é chamado de 'primário'. Nesse setor estão os trabalhos que rendem dinheiro pegando coisas da natureza, como as matérias-primas. Há o exemplo do petróleo, que vem de baixo da terra e serve para fazer gasolina, ou óleo diesel e fazer os veículos andarem. A matéria-prima pode vir de um vegetal, como a madeira de árvores, que pode ser usada para fazer móveis ou papel. No setor primário existem coisas que são pegas do jeito que estão na natureza: minerais, vegetais... E há coisas que são cultivadas. A agricultura faz parte do setor primário da economia.
O setor chamado de secundário é a indústria. Nela, as matérias-primas são transformadas em produtos diferentes. Temos indústrias de coisas simples como o óleo de coco, um sabonete ou uma pasta de dentes, e temos indústrias de máquinas pesadas, como os tratores que servirão para construir estradas. A construção civil, de estradas, ou de prédios, também faz parte do setor secundário da economia.
O setor terciário abrange o comércio, que envolve a troca de produtos, e os serviços. Esses podem ser muito diferentes uns dos outros, como o serviços profissionais de uma manicure, de um eletricista, de educação, ou na medicina. Os serviços de telemarketing ou de entregador também estão no ramo terciário da economia.
Assim, a economia abrange quase tudo o que se faz por ai visando ganhar um dinheiro.
No início dessa conversa eu disse que via duas coisas que incomodavam mais, no pensamento capitalista. Vamos agora à segunda: os atalhos e ilicitudes.
Dizem que o capitalismo defende a liberdade econômica. Mas isso torna-se mentira quando encontram meios para eliminar a concorrência. Se uma empresa grande mata ou sufoca as pequenas não há liberdade. Se as condições da disputa são muito desiguais, que liberdade é essa? Dowbor (2014) fala da "cartelização (monopsônios ou oligopsônios no jargão econômico)". Naquele outro ensaio falei da corrupção, sonegação de impostos, do controle das eleições pelo poder econômico, da conquista de leis e uso do Estado a favor da 'classe dominante' , com isenção de impostos (VALLIN, 2016). Poderíamos citar ainda a liberação (por meio de mudança de leis) de exigências de proteção da natureza e de garantias para setores historicamente oprimidos.
Agora quero refletir um pouco sobre situações criadas no mercado para que mega empresários tenham mais poder, controle, e assim recebam gordas quantias de dinheiro, enquanto que os que trabalham e os pequenos produtores recebam pouco. Trata-se de ganharem dinheiro em cima do trabalho de outras pessoas sem repartir com elas o resultado dos trabalhos de forma justa.
Ladislau Dowbor fala que existem mega empresas assim, relativamente poucas, no cenário mundial, que geralmente estão instaladas em 'paraísos fiscais', usam 'nomes fictícios', praticam 'evasão fiscal', fazem 'lavagem de dinheiro de drogas', venda não declarada de armas, e corrupção. São empresas que se ocupam com a intermediação e controle de mercado. Fala de um 'limbo jurídico' diante da internacionalidade em que se colocam. Para ele:
as cadeias produtivas tornam-se cada vez mais complexas, com diversas etapas da produção pertencendo frequentemente a diferentes grupos econômicos, e situados em diferentes regiões ou países. Entre a base produtiva e o consumidor final, acumulam-se diferentes níveis de intermediação comercial, financeira e jurídica, obscurecendo como as diversas etapas da cadeia produtiva se refletem no valor agregado e no preço do produto (DOWBOR, 2014)
A cadeia produtiva começa lá na matéria prima, no setor primário da economia, e segue para a transformação pela indústria (setor secundário), e vai até o terciário onde encontramos o comércio de atacado, para depois chegar ao varejo que vende para o consumidor final. Quando essa cadeia está dispersa em vários países, e em várias empresas, tudo fica mais complexo.
Os valores que se encontram nos paraísos fiscais são enormes. Pesquisas falam que está "entre 21 e 32 trilhões de dólares, para um PIB da ordem de 70 trilhões, ou seja, algo entre um terço e metade do PIB mundial" (DOWBOR, 2014).
Dowbor mostra a situação do café, para exemplificar uma relação totalmente desequilibrada entre produtores, trabalhadores e intermediários. Com um gráfico mostra que o valor obtido pelo produtor primário de café é 14 centavos de dolar. Os preços para colocação no porto, descarga no destino, e após processamento na fábrica são menores ou igual a 2 dolares cada um. Por outro lado, quando segue para a prateleira do supermercado o preço aumenta para 26, e finalmente o preço sob forma de café para consumo se torna 42 dolares. Vejamos o que foi colocado:
Ao pegarmos as cinco primeiras etapas, vemos que para o conjunto dos agentes econômicos que podem ser considerados produtivos (produtor, serviço comercial primário, transporte, processamento) a participação no valor que o consumidor final paga ainda é muito pequena. O imenso salto se dá no preço na gôndola do supermercado, os Walmart ou equivalentes em qualquer país. E outro salto se dá no 'when made into coffee', ou seja, quando é servido sob forma de café. O gráfico fala por si. E os valores nas pontas, 14 centavos e 42 dólares, dão uma ideia da deformação da lógica de remuneração dos fatores e dos agentes econômicos (DOWBOR, 2014, p. 8).
Ele se queixa ainda que existem poucos ou nenhum estudo para mostrar em que elo da cadeia produtiva o preço está sendo aumentado, para os diversos produtos que consumimos. O fato é que existe um setor da economia que gira por cima dos três setores. Não existe acordo sobre um ramo quaternário da economia, mas eu vejo isso como um jeito diferente de ganhar dinheiro, que parece não se encaixar em nenhum desses anteriores, e eu arriscaria até chamar de setor quaternário. Esses são negócios que não produzem nada. Servem para organizar serviços e trabalhos de vários setores. Trarei outros 2 exemplos concretos para refletirmos sobre o que estamos falando.
O primeiro exemplo é sobre uma empresa que controla a produção de eucalipto. O eucalipto é uma árvore plantada, e depois cortada, e sua madeira serve para fazer papel ou móveis. Hoje existe um produto que imita madeira, que é o MDF. Ele é comprado em placas e usado pela indústria para fazer móveis de todo tipo. Difícil que não tenha um móvel de MDF e um pedaço de papel ai, perto de você! Mas vamos voltar à empresa que controla a produção de eucalipto. Essa empresa não faz nada e ao mesmo tempo faz tudo - influencia na cadeia produtiva de ponta a ponta. Começa por um contrato de parceria, que é feito junto a quem tem um pedaço de terra. É oferecido o plantio de eucalipto na terra da pessoa, informando que não precisará fazer nada, nenhum trabalho, é só assinar o contrato e pegar o dinheiro no final. Como isso funciona? O eucalipto será plantado, cuidado durante o crescimento, colhido, transportado, vendido. No final a venda renderá certa quantia de dinheiro. Serão descontados os custos de produção e restará o lucro. Uma parte do lucro ficará com essa super empresa que controla o plantio de eucalipto e o restante ficará para o dono da terra. Parece simples. Não é? Mas precisamos falar de alguns detalhes. As mudas para plantio, vêm de um viveiro que fornece para todas as partes do Brasil. Esse viveiro é como uma indústria de mudas. Elas saem aos milhares, todos os dias. E são transportadas até chegar em outro estado, e município. Os trabalhos necessários à plantação de eucalipto, em geral, são dados a empresas terceirizadas, que contratam empresas intermediárias. Essas usam trabalhadores contratados por produção, alguns com contratos temporários e precários. O preparo da terra, com tratores; o plantio das mudas; a aplicação de veneno contra as formigas; a poda após certo tempo de crescimento; o corte e preparação para o transporte ao final de 6 anos; o transporte; a venda: tudo o que for preciso é resolvido por contratações localizadas e tratado como prestação de serviços. Existem empresas, que são também parceiras desse sistema, que são contratadas para cada trabalho diferente. Tudo é pago conforme o tamanho do trabalho/resultado que se espera. Os pagamentos advém de um financiamento, uma dívida. Assim, a empresa de controle da produção de eucaliptos não é dona da terra, não produz mudas, não faz o plantio nem o controle de formigas, mas contrata empresas para tudo. O que essa mega empresa faz, é a contratação e o gerenciamento de toda a cadeia produtiva. E mais, tem o controle de tudo e consegue interferir e determinar os preços.
Qual o setor da economia de uma empresa como essa? Poderia ser todos os setores, visto que no primário há a agricultura, no setor secundário vemos a indústria que recebe os eucaliptos e os transforma em MDF ou papel. No setor terciário temos o plantio e a colheita, e ainda os serviços, de aplicação de veneno, ou de transporte de toras. Essa empresa que atua em todos os setores (1ário/2ário/3ário) da cadeia produtiva do eucalipto, ao mesmo tempo, terceiriza tudo para outras empresas e pessoas e assim, não está em nenhum setor diretamente, não há nenhum trabalho que dependa dela. Eu classificaria como uma empresa de controle e especulação. Isso porque ela tem o controle do processo de ponta a ponta e por isso consegue ter o controle dos preços e dos pagamentos. Esse tipo de atividade subordina todas as demais e gera uma dependência. É o que estou chamando de setor quaternário da economia.
O segundo exemplo é o Uber. A empresa proprietária do Uber é a Google. Mas ela não é proprietária de nenhum automóvel que preste serviço. Nem os motoristas que prestam esse serviço são empregados dela. Ao menos, não têm os direitos trabalhistas como se fossem empregados. O que faz a Google no serviço de Uber? Ela controla todos os serviços de ponta a ponta. Tem o controle dos carros disponíveis, e tem os consumidores em seu aplicativo. Um só consegue chegar ao outro se passar pelo seu aplicativo. A Uber recebe o pagamento do usuário e repassa com certo desconto ao motorista. Ela recebe uma parte, sem ser motorista, sem ter automóvel, sem arriscar nada. Hoje fala-se em Uberização na economia. São outras empresas que atuam de modo semelhante ao da Uber. Eu entendo que é um sistema quaternário, em que a empresa consegue tomar para si o controle de toda cadeia produtiva até o usuário final, colocando todos em sua dependência e assim consegue controlar os preços, e lucrar sem ter empregados e sem ter maquinário ou meios de produção.
Pouco importa se chamaremos de quaternário, ou se terá um nome especial. O que importa é que grande parte da produção de bens mundial está subordinada a essas mega empresas, grupos empresariais, corporações, em negociações não explicitadas, escondidas, dispersas em vários países, em várias instituições, e que controlam o trabalho, os preços e os ganhos de toda gente. Não é o capitalismo clássico, mas uma coisa pior, mais difícil. De modo próximo ao que afirmou Dowbor, para nós isso vai além da ideia do 'lucro' do empresariado, que paga aos trabalhadores menos do que o valor obtido. Vai além do dilema original do capitalismo. Existe uma apropriação de valor muito maior que se dá pelo grupo que controla a cadeia produtiva. Tanto trabalhadores quanto pequenos proprietários ficam dependentes desses mega-esquemas que lhes tomam o trabalho, que lucram em cima do trabalho deles. Nessa fragilidade existe algo em comum entre classe trabalhadora e pequenos empresários: ambos perdem muito para as megacorporações. Em Capitalismo Dependente, Florestan Fernandes mostra como, historicamente, essa situação foi se formando. Escreveu seu estudo em 1973, portanto, antes de existir as articulações do neoliberalismo. Naqueles tempos falava de 'capitalismo corporativo ou monopolista'.
Para nos contrapor e criar possibilidades fora desse frenesi de querer sempre mais, com competições desiguais, que tiram do trabalho dos outros, é preciso compreender.


REFERÊNCIAS
DOWBOR, Ladislau. Produtores, Intermediários e Consumidores: o enfoque da cadeia de preços. Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, n. 3, p. 7-16, jul-set, 2014. Disponível em <https://ren.emnuvens.com.br/ren/article/view/115/94>. Acesso em 2019.10.19
VALLIN, Celso. Farinhada comunitária. In: I Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo. Belo Horizonte, MG : FAE, UFMG, 2016. Disponível em <https://www.simposioedumarx.com.br/edicao-atual>. Acesso em 2018.08.13; Ver também em <https://celsovallin.blogspot.com/search?q=farinhada>

domingo, 14 de julho de 2019



CULTURA_É ...

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2019-2 – notas do Prof. Dr. Celso Vallin

O que é cultura?


Floricultura, encontro cultural, espaço cultural, agricultura, cultura indígena, culto religioso, cultura pop, piscicultura, aculturação, políticas culturais...



O termo deriva de cultivo, cultivar. Do mesmo modo que se pode cultivar a terra, ou cultivar uma amizade, fala-se no cultivo do espírito humano, como vemos a seguir:

No final do século XVIII e no princípio do seguinte, o termo germânico Kultur era utilizado para simbolizar todos os aspectos espirituais de uma comunidade, enquanto a palavra francesa Civilization referia-se principalmente às realizações materiais de um povo. Ambos os termos foram sintetizados por Edward Tylor (1832-1917) no vocábulo inglês Culture, que “tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”. Com esta definição Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar fortemente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida por mecanismos biológicos. (LARAIA, 1986, p. 25).

Como vemos a cultura não é algo inato, ou determinado biologicamente, mas aprendido com o grupo de convivência. Já nos anos 1700 falavam sobre isso. Destaque para “de uma comunidade”. Cultura é algo que é comum a um grupo social, e não são aspectos sociais que cada pessoa pensa e faz. Só valem aquelas coisas que são comuns ao grupo, apesar de algumas pessoas fazerem diferente.

Olhando de certo modo, a adaptação da pessoa aos conhecimentos, crenças e modo de vida de sua comunidade pode ser o destaque, como no trecho que segue.

Sahlins, Harris, Carneiro, Rappaport, Vayda e outros [...] concordam que: "Culturas são sistemas (de padrões de comportamento socialmente transmitidos) que servem para adaptar as comunidades humanas aos seus embasamentos bio-lógicos. Esse modo de vida das comunidades inclui tecnologias e modos de organização econômica, padrões de estabelecimento, de agrupamento social e organização política, crenças e práticas religiosas, e assim por diante.". (LARAIA, 1986, p. 59)

Aqui a palavra adaptar ganha destaque. Adaptar-se aos hábitos de vida da comunidade. Mas será que a cultura pode ser alterada? Uma cultura pode evoluir? E nós, podemos ter um papel nessa mudança cultural? Claro que sim. Vejamos essa outra citação.

Geertz considera que a antropologia busca interpretações. Com isto, ele abandona o otimismo de Goodenough que pretende captar o código cultural em uma gramática; ou a pretensão de Lévi-Strauss em descodificá-lo. A interpretação de um texto cultural será sempre uma tarefa difícil e vagarosa (LARAIA, 1986, p. )

Quando falamos em texto cultural, aparece uma abertura para se pensar em mudanças. Freire (1965) olha para outros aspectos envolvidos. Para ele o conceito antropológico de cultura envolve nossa relação com a natureza, com o trabalho nela, e deve ser crítica e criadora:

entre os dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediação que tem a natureza para as relações e comunicação dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como o resultado de seu trabalho. Do seu esforço criador e recriador. O sentido transcendental de suas relações. A dimensão humanista da cultura. A cultura como aquisição sistemática da experiência humana. Como uma incorporação, por isso crítica e criadora, e não como uma justaposição de informes ou prescrições “doadas”. A democratização da cultura — dimensão da democratização fundamental. (FREIRE, 1965, p. 108 e 109)

Nos primórdios da humanidade, éramos mais próximos da natureza. É sempre bom lembrar que somos parte da dela. A humanidade foi alterando o que era natural, e foi procedendo criações, não só de espírito, mas concretas. Para isso usou a ciência (que é o conhecimento em geral), e surgiram as ferramentas (que são construídas por pessoas e que servem para ser usadas na vida). Ao contrário do que podemos pensar, as ferramentas não são neutras. Elas carregam em si o conhecimento, a ciência. Cada ferramenta é um artefato tecnológico, e serve para realizar coisas para as quais foi pensada. Um martelo serve para bater com mais força. Um lápis serve para escrever. Um teclado de computador tem a escrita alfabética por trás de sua criação. Uma técnica ou tecnologia são ideias que servem para fazer e resolver desafios práticos, e as ferramentas são desenvolvidas para serem usadas conforme a tecnologia.

Fato é que a humanidade interfere na natureza e cria artefatos para seu uso. Por isso FREIRE (1965) falou, como vimos, em “cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez”. Com isso,  a humanidade toma e transforma objetos e matérias da natureza.

Considerando que a humanidade evoluiu com o passar dos séculos, fica evidente que a cultura não é algo estático. Por isso Freire fala em “aquisição sistemática da experiência humana”. E dá importância ao modo como cada pessoa, enquanto assimila conhecimentos e hábitos de nosso grupo, também é capaz de fazer crítica, ou seja, trabalha para modificar certas coisas com as quais não concorda, ou que considera que possam ser melhoradas. Mudamos objetos, mas mudamos também coisas imateriais como as concepções e modos de pensar e agir. O ato criador envolve fazer mudanças. Mudamos em nós, e podemos cultivar mudanças que passarão a ser do grupo. Por isso Freire aponta a capacidade de cada pessoa de ser crítica e criadora. Dessa maneira, a cultura não é vista somente como algo a ser assimilado, mas algo que podemos discutir, refletir, e modificar.

As criações e críticas não são construídas individualmente e isoladamente. Quando as pessoas trocam ideias, tudo é melhor. Dai a necessidade de se comunicar. Uma pessoa quer conversar com a outra e por isso surgiram as línguas e linguagens. Também a escrita, é um artefato da comunicação. Pela escrita podemos ler o que escreveram pessoas que já morreram. Podemos nos comunicar com pessoas que nem conhecemos pessoalmente, como é o caso dos livros, e mais recentemente de textos disponibilizados pela internet. Existe um enorme acervo de escritas da humanidade ao qual podemos ter acesso. E por isso o aprendizado da escrita e da leitura é visto como "uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introdução no mundo da comunicação escrita. O homem, afinal, no mundo e com o mundo. O seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto." (FREIRE, 1965, p.109).  Se olhássemos para a cultura somente como um padrão a ser assimilado, estaríamos desprezando as possibilidades de evolução do grupo humano.

Como imaginar uma pessoa que participe de verdade da cultura humana, ou de seu grupo social, e que não lê, ou que não escreve? E como imaginar alguém que pensa, cria, critica, mas não lê e não escreve? Certamente sua capacidade de comunicação fica bastante prejudicada. Apesar de que, cada vez mais, encontramos comunicações orais que são disponibilizadas em forma de vídeo ou áudio pela internet. Isso vem ampliando as capacidades de comunicação social de analfabetos, e também alterando bastante os modos como a humanidade se comunica. Mas é algo recente e que devemos aguardar para compreender melhor seu alcance e limitações.

Somente os homens são seres da práxis – ou refletem sobre o que estão fazendo, sobre como estão vivendo, como uns se relacionam com os outros. As pessoas se comunicam e assim as reflexões passam a ser coletivas e compartilhadas. A partir das reflexões, individuais e coletivas, são feitos planos para agir de forma diferente, para modificar a ação humana sobre o mundo, e sobre a natureza. Assim, a ação humana é consequência dessa reflexões, ou teorizações.

Teoriza-se sobre o mundo, natureza e sociedade, e busca-se uma forma de ação que possa incorporar o conhecimento que há na teorização. Humanizar-se é saber o mundo e pensar sobre como agir nele e como estar nele. Para falar da cultura, Freire compara a humanidade aos animais.

A diferença entre os dois, entre o animal, cuja atividade, porque não constitui “atos-limites”, não resulta uma produção mais além de si e os homens que, através de sua ação sobre o mundo, criam o domínio da cultura e da história, está em que somente estes são seres da práxis. Somente estes são práxis. Práxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem práxis, não implica em criação, a transformação exercida pelos homens implica.
E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as instituições sociais, suas ideias, suas concepções. (FREIRE, 1970, p. 92)


Em Educação como Prática da Liberdade, que é um livro anterior, Freire também fala sobre o que entende por cultura, e sobre como a participação cultural nos faz diferentes dos animais, e por isso é vista como uma hominização, ou humanização. Vejamos o que diz dos animais de depois das pessoas:

Os contatos, por outro lado, modo de ser próprio da esfera animal, implicam, ao contrário das relações, em respostas singulares, reflexas e não reflexivas e culturalmente inconseqüentes. Deles resulta a acomodação, não a integração. Portanto, enquanto o animal é essencialmente um ser da acomodação e do ajustamento, o homem o é da integração. A sua grande luta vem sendo, através dos tempos, a de superar os fatores que o fazem acomodado ou ajustado. É a luta por sua humanização, ameaçada constantemente pela opressão que o esmaga, quase sempre até sendo feita — e isso é o mais doloroso — em nome de sua própria libertação. (FREIRE, 1965, p. 43)

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em ternos de relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas.

E o fará melhor, toda vez que, integrando-se ao espírito delas, se aproprie de seus temas fundamentais, reconheça suas tarefas concretas. Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. Rebaixa-se a puro objeto. Coisifica-se. — “Libertou-se — diz Fromm — dos vínculos exteriores que o impediam de trabalhar e pensar de acordo com o que havia considerado adequado. Agora — continua — seria livre de atuar segundo sua própria vontade, se soubesse o que quer, pensa e sente. Mas não sabe. Ajusta-se (o grifo é nosso) ao mandado de autoridades anônimas e adota um eu que não lhe pertence. Quanto mais procede deste modo, tanto mais se sente forçado a conformar sua conduta à expectativa alheia. Apesar de seu disfarce de iniciativa e otimismo, o homem moderno está esmagado por um profundo sentimento de impotência que o faz olhar fixamente e, como que paralisado, para as catástrofes que se avizinham. (FREIRE, 1965, p. 44)

Como vemos, já em 1965 FREIRE falava de coisas que parecem ser de hoje. Falava da pessoa do tempo moderno, que sente-se impotente e paralisada diante da complexidade da sociedade, e das manipulações que chegam pelas comunicações de massa (ou publicidade organizada), pessoa que acaba sucumbindo à acomodação, incapaz de realizar a crítica e atuar de forma criativa. Mas falava ele, e falamos nós, não por concordar com esse determinismo social, mas por entender que é preciso dessa consciência para libertar-se. Por isso seu livro foi chamado de Educação como Prática da Liberdade. Libertar-se no sentido da pessoa ganhar conhecimento e condições que lhe permitam ter forças para pensar por si mesma.

Isso nos dá esperança nas lutas pela transformação social na busca da conciliação entre humanidade e natureza.

A pessoa que só assimila a cultura, que se considera desimportante para as mudanças sociais, e não faz crítica nem propõe ações criadoras é como um animal, está deixando de usar seu lado humano.

Veja também da questão 4 em diante em <https://celsovallin.blogspot.com/2013/07/cortella-2003.html>. Lá existem questões e respostas que se referem a um texto de Cortella.


REFERÊNCIAS
FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro : Ed. Paz e Terra. 1965/1969(2a edição).
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1970/1987(21a Edição).
LARAIA, Roque B., Cultura: um conceito antropológico— Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986/2001(14a Edição).


domingo, 19 de maio de 2019

POLÍTICA? POR QUE?

CELSO VALLIN, 2019, MAIO

Nesses dias eu estava em uma reunião de estudantes que combinavam um ato público em defesa da educação e alguns diziam que deveríamos ter cuidado para não deixar que políticos entrassem naquele movimento. E alguns acabaram propondo que não fossem permitidas falas políticas. E ai veio a dúvida, sobre: O que é ser político? E: O que é ser partidário? E: Por que não querer o político ou o partidário?

Dizer que nossas conversas e decisões deveriam *não* ser políticas é um engano, um erro. Porque cada vez que queremos decidir alguma coisa, estamos fazendo política. Não há como viver sem fazer política. Política, mais amplamente, se refere a decisões sobre coisas que afetam muitas pessoas. 

Vejamos um exemplo. Estou caminhando domingo de manhã numa avenida que foi interditada ao trânsito de veículos. Essa interdição do trânsito acontece para que as pessoas possam fazer caminhada. Vemos crianças brincando de patinete, bicicletas, patins, gente com carrinhos de nenê, idosos, mulheres, homens, todo tipo de gente que aproveita a avenida aos domingos. Durante a semana essa avenida é muito movimentada. Está sempre cheia de carros, ônibus e outros. Acontecem até congestionamentos. Mas hoje, domingo de manhã, ela fica interditada para que as pessoas façam um uso diferente. Não há uma organização social. Cada pessoa vem aqui e faz o que quiser. E vem muita gente. O lugar fica cheio. Falo disso para mostrar que foi tomada essa decisão, de interditar trânsito e favorecer o uso para o lazer. 

Outro dia eu ouvi dizerem que não haveria mais a interdição aos domingos. E com isso as pessoas não poderiam aproveitar a avenida daquela forma. Houve pessoas que reclamaram. Alguns acharam um absurdo, visto que não existem parques e praças por perto que possam acolher as pessoas da mesma forma. E também, porque acham muito bom, prático e gostoso aquele espaço. Acaba sendo até um ponto de encontro entre as pessoas. É difícil ir lá e não encontrar pessoas conhecidas, com quem, acabamos conversando um pouco. E isso é bom.

Então está colocada a polêmica: porque manter a interdição da avenida aos domingos, ou porque retirar a interdição? 

Algumas pessoas não queriam que a avenida ficasse interditada porque isso é ruim para elas, que costumam passar por ali no domingo de manhã. E com a interdição têm que desviar o caminho, para uma trajetória muito mais difícil. Quando passam pela avenida é mais rápido, mas curto o caminho, plano, desimpedido. Mas por outro lado, para as pessoas que querem a avenida interditada, ficaria difícil encontrar um lugar para fazer caminhada, para brincar com as crianças, com os cachorros, tomar sol... 

E ai está dada a contrariedade: uns querem assim e outros querem assado. Por isso é preciso decidir. Isso é a política: a decisão, o processo de decisão.

Qual o critério que será usado para tomar tal decisão? O critério poderia ser olhar qual das duas situações é mais necessária, ver qual precisa mais. Pode-se olhar qual situação tem mais gente querendo. 

Mas não necessariamente a situação escolhida pelo maior número de pessoas será a melhor. De repente as pessoas podem dizer: 

– Olha ...  Uma atividade de caminhada aos domingos faz bem para a saúde. A população está precisando disso. Vamos favorecer esse tipo de atividade física porque é importante que as pessoas estejam com saúde, e teremos menos gente adoecendo. 

Isso pode ser observado na realidade, pela quantidade de pessoas com sobrepeso, obesas, e as que contraem doenças por falta de exercício físico. 

Temos que considerar que, se hoje existe muita gente que vai à avenida aos domingos, isso no início não era assim. Foi resultado de um processo. No começo pouca gente sabia que poderia ir lá. As pessoas não estavam acostumadas, não se programavam para ir à avenida no domingo de manhã. Algumas nem sabiam que iriam gostar de fazer isso. E as opiniões foram mudando com o tempo, conforme as pessoas puderam conhecer melhor a situação.

Onde quero chegar? 

Quero mostrar que política é a decisão, e faz parte da vida de qualquer pessoa e principalmente de nossa relação social, mesmo quando não sabemos ou não queremos. No caso das decisões sobre coisas que afetam o coletivo social, com mais razão ainda, a política existe, e é necessária. Por isso negar a política é uma atitude boba, inocente. A política existe e todos nós sempre participamos de questões sociais e coletivas. Negar a política cruamente, e sempre, sistematicamente, significa deixar que outras pessoas tomem as decisões que irão nos afetar. Negar a política é negar a discussão, e ai quem tiver mais oportunismo, quem tiver mais poder, irá tomar a decisão, esteja certa ou errada. 

Por outro lado, afirmar a política, ou aceitar que existe a política, significa estimular a nós mesmos e a toda gente para falar, se manifestar dizendo: quero! Ou: não quero! É deixar claro que existem certas polêmicas, e por isso tem gente que quer assim, e tem gente querendo de outra forma. Conforme as pessoas se permitam que exista uma conversa política, será dito que, se for decidido do primeiro modo, irá dar tais consequências: certas vantagens e certos problemas e inconveniências. E se for decidido do outro modo haverá ainda outras vantagens, e outras inconveniências e problemas. Aceitar a política significa trabalhá-la, e deixar que as pessoas se envolvam, estimulando que se posicionem. A política no bom sentido é isso: participar, enfrentar contrariedades, colocar as ideias em público, as vantagens e contrariedades na mesa de negociações, e tomar a decisão coletivamente, em público, em discussão aberta e não escondida

Fazer política é discutir, negociar e decidir. Esse é o bom sentido da política. O sentido que, se for assumido, será bom para todos.

Agora vamos para a segunda parte dessa conversa. 

Há pessoas que assumem que são políticas, mas não querem ser *partidárias*. O que isso significa e o que implica deixar que as discussões partidárias entrem na conversa?

Essa ideia de partidário vem de partido político. Temos hoje alguns partidos, e precisamos entender que eles vêm se transformando ao longo dos anos. Grosso modo, os partidos nascem, se modificam, e morrem. 

Um exemplo é o PT, o partido que governou o país por mais tempo nas últimas décadas. No período da ditadura civil-militar, o PT ainda não existia. E quando se formou, não foi pela reacomodação de partidos anteriores que já existissem, como aconteceu com o DEM, que foi praticamente uma mudança de nome. O DEM foi a refundação do PFL em 2007. O PT não. Ele realmente nasceu em 1980, de movimentos sindicais, sociais, pastorais, e também da indignação do povo diante da ditadura. Um tanto de gente se juntou e decidiu fundar um partido que os representasse. Em 2003 foi a primeira vez que essas pessoas conseguiram chegar à presidência do país, através da candidatura do Lula. Mas a luta política do Partido dos Trabalhadores começou muito antes. Foram longos 23 anos, e muitas tentativas, e muito movimento militante, antes de iniciar o período de governo. 

Hoje também temos partidos que estão nascendo, como o Novo; a Rede, o Podemos e outros. Por ai dá para perceber que o partido político não é uma coisa eterna, e nem definitiva. Existem ainda mudanças de partido que são oportunistas...  

Ah... Falei de partidos novos e esqueci de citar o PSL. É o partido do presidente. O Bolsonaro. Mas o PSL não é novo realmente. Existe desde 1994, quando foi fundado pela família Tuma. Sempre foi pequeno e sem grande importância até que em 2018 passou de 8 deputados federais para 52, e chegou à presidência.

O que queremos mostrar é que a dinâmica partidária cria, modifica, e faz morrer os partidos. 

Para aprofundar a conversa precisamos perguntar: 

– Por que existem partidos políticos?

Os partidos políticos existem com o objetivo de fazer a disputa das eleições, sejam do município, seja estadual, ou do Brasil. 

– E por que queremos eleições? 

Porque vivemos num país que possui governos, os governos executivos, os legislativos, e judiciários, sendo que os executivos e os legislativos são eleitos pelo voto popular. 

Há críticas ao nosso sistema político devido as eleições serem só a cada quatro anos, indicando que a participatividade da população poderia ser mais frequente. Isso é verdade. Mas não se pode desprezar a importância das eleições. Porque é por meio delas que as pessoas escolhem quem ocupará os cargos políticos, que representam o meio pelo qual são tomadas as grandes decisões do país (e de estados e municípios). 

– Por que grandes decisões? O que é isso?

São decisões que alteram as estruturas maiores da sociedade. Podemos pensar, um exemplo que ajude a concretizar e entender o que são essas grandes decisões políticas. Vejamos a notícia "Governo Bolsonaro bate novo recorde e chega a 166 agrotóxicos liberados em 2019. Destes, 24 são considerados “altamente tóxicos” e 49 estão dentro da escala dos “extremamente tóxicos”. [...] A lista consta no Ato nº 29, publicado na mesma data [30/4] no Diário Oficial da União (DOU)." (do Jornal Brasil de Fato, 7/5/2019 - https://www.brasildefato.com.br/2019/05/07/governo-bolsonaro-bate-novo-recorde-e-chega-166-agrotoxicos-liberados-em-2019/). Isso foi uma decisão de governo. Foi liberado o uso de agrotóxicos novos. Alguns desses são proibidos em outros países. 

Outro exemplo de decisão política que altera as estruturas maiores da sociedade é a chamada "reforma da previdência". Trata-se de uma proposta, ainda em discussão, para fazer alterações na Constituição Brasileira. Essa proposta é apontada por muitos como um ataque ao direito das pessoas de ter sua seguridade social, por tentarem privatizar grande parte do sistema, colocando vultosas e novas quantias de dinheiro na mão de banqueiros. Essa é uma decisão nacional, que está em discussão. Desde o governo anterior, o governo Temer, foi tentada a modificação sem êxito. E agora estão tentando de novo. Por ser uma alteração na Constituição, somente o Congresso pode aprovar. O Congresso é formado por dois grupos grandes de políticos: a Câmara Federal, com mais de 500 Deputados, e o Senado, com 81 políticos. Mas quem está propondo e trabalhando para conseguir a aprovação pelos Deputados e Senadores é o Poder Executivo. Dai que se pode dizer que a reforma para privatizar a previdência, e a seguridade social, é uma iniciativa dos dois poderes, o legislativo e o executivo. Mas o que não podemos dizer é que seja um caso decidido. Do mesmo modo que a proposta não conseguiu ser aprovada antes, sabemos que o país está em disputa e que os interessados nessa Reforma ainda podem perder. 

Para relembrar nossa linha de pensamento, estamos querendo entender por que ter ou não ter partidos políticos.

 As grandes decisões sobre a vida nacional, a vida de nós todos, as decisões sobre as regras que estruturam a vida da sociedade,  são tomadas pelo poder político, e só quem faz parte de um Partido Político pode se candidatar a cargos políticos. Dai que, naturalmente, quem está em cargo político, seja no executivo ou legislativo, é uma pessoa de algum partido político. Ninguém pode ser candidato, ninguém pode se eleger, se não estiver filiado a um partido. 

Então se nós aqui da população, vamos para a rua dizendo que nossa posição é política mas não é partidária, isso significa que nossas decisões e discussões não estarão vinculadas a um ou outro desses partidos da política brasileira. Essa é uma decisão para a qual precisamos perceber quais os fatores envolvidos e quais as consequências. 

Em geral um Partido se identifica com um conjunto de ideias, um projeto de país. O jeitão de pensar o país se expressa por um conjunto de ideias sobre como fazer isso, sobre como fazer aquilo no país, e essas ideias e projetos formam o projeto do Partido Político. Muitas vezes a gente do povo gosta de um Partido, vota, ou tem preferência por causa das ideias que são defendidas.

Por outro lado, existe uma distância complicada entre as ideias que o Partido defende, e a realidade do que é feito de fato pelo Partido e pelas pessoas que o compõe. 

Ai que reside o grande problema sobre aderirmos a um Partido Político. As pessoas, nós todos, somos cheios de incoerências. Ou seja: numa hora a pessoa quer uma coisa, e em outro momento quer outra coisa, e às vezes uma contraria da outra. O ser humano é cheio de incoerências. Nós todos. Essas convivem em nosso pensamento. 

Outro fator que colabora para embaralhar o projeto de algum partido, é que muitas vezes, falta a cada um de nós olhar para o coletivo social, cultivar o espírito público . E isso pode acontecer com você, de querer defender uma coisa só porque vai beneficiar a seu irmão, você mesmo, sua mulher, mas você não está pensando no país como um todo. Muitas vezes não lembramos de olhar para a sociedade em geral. Defendemos uma ideia só porque ela vai ser boa para o nosso pé, para o meu nariz! Isso também acontece com pessoas em cargos políticos.

E ainda há coisas piores. Vamos voltar ao exemplo dos agrotóxicos. De repente, algum deputado votou a favor da liberação dos agrotóxicos em troca de um benefício, que veio só para ele. Acontecem, muitas vezes, e é chamado de "compra de voto". Nesse caso é pior. Por que não é questão do político estar defendendo seu próprio nariz, ou sua gente, mas ele está defendendo uma coisa que nem ele acredita, só porque irá trocar por um favor específico. Isso significa que o político está se vendendo, se corrompendo. 

Esse tipo de corrupção pode acontecer dentro da lei. É o caso das emendas legislativas em que são destinadas verbas para fazer obras lá na cidade de origem do político. Isso fará a pessoa ficar bem-vista, e ganhar votos. Esse jogo, de mandar dinheiro para o município do político, não é visto como ilegal. Não se diz que é corrupção, mas pode ser, quando esse benefício está sendo trocado por outra coisa que irá danar o próprio povo do município, como é o exemplo do agrotóxico.

Então, embora o Partido Político seja necessário, embora represente um projeto de sociedade, a realidade das pessoas e às vezes dos partidos, que são feitos por pessoas, é essa contradição, contrariedade, incoerência. 

Quando começamos a querer ser partidários temos que observar duas coisas: qual é o projeto político do partido, mas também o que têm sido feito, nos últimos anos, pelas pessoas do partido. Porque não adianta falar umas coisas bonitas e fazer outras coisas diferentes.

Trocando em miúdos, os partidos são necessários à construção democrática, mas são cheios de incoerências, e a realidade da política é complicada.  Pela incoerência que deriva das pessoas que estão nos cargos de poder, e das situações concretas que as envolvem, o partido vai mudando, não é sempre do mesmo jeito. Isso acontece não somente porque tais políticos, ou outros, são ruins, mas porque a humanidade é assim, incoerente e imperfeita. Não há outro jeito senão, prestar atenção e estar participando constantemente das discussões e das decisões.

Então, queremos ou não, que existam posicionamentos partidários em nossa manifestação de rua? Por que?

Não creio que vale tentar colocar aqui uma conclusão, uma resposta. Para mim, a conclusão maior é que precisamos participar. E ainda, que as discussões devem ser cultivadas. Coletivamente devemos favorecer a discussão política e as falas que esclareçam o que está em jogo, quais os interesses, quais os problemas e as vantagens. 



Quando houver pessoas partidárias, que busquemos ter isso com clareza, fazendo um jogo aberto, sem coisas escondidas ou não ditas.

FIM

quarta-feira, 15 de maio de 2019


FARINHADA COMUNITÁRIA


Esse texto foi escrito em 2014 como trabalho final do Curso de Realidade Brasileira (Primeiro da Região Sul de Minas Gerais). Começo questionando o senso comum que indica o socialismo e o comunismo como algo ruim [1]. Trago para o pensamento mudanças recentes da sociedade que têm feito as pessoas sentirem-se perdidas [2]. O patronato oprime a classe trabalhadora, mas mesmo quem é mais rico sofre com a mentalidade capitalista, que pressiona a todos [3]. A correria, que está na boca de todos, hoje, traduz o jeito capitalista de viver e algumas das bases disso são: o individualismo, o produtivismo, a competitividade, a padronização, e a modernização [4]. Em seguida mostro como ao longo dos últimos anos comecei a questionar o fato de não existir comunidade no sentido amplo do termo, mas ao problematizar comecei a observar, empiricamente, em lugares e tempos diferentes e distantes, organizações comunitárias da cultura tradicional que existem e resistem. Observei a folia de reis, o congado, a farinhada comunitária e outros episódios de organização comunitária que antes não conhecia [5]. Voltando ao mundão capitalista, observamos que ele condiciona o modo de operação e organização mesmo nas universidades, em nossa relação com a natureza e na postura da grande mídia que nos “catequiza” todos os dias [6]. Mas ao contrário do que muitos pensam, não é uma opção da humanidade, nem um jogo justo. O poder dos capitalistas, os proprietários de grandessíssimas fortunas, passa pela roubalheira dos bens públicos. Nosso sistema político não é uma democracia real visto que as campanhas eleitorais são manipuladas fortemente pelo poder do capital e grande parte dos que são eleitos como representantes políticos estão a serviço desses grandes grupos capitalistas e não representam o povo como seria de se esperar [8]. Temos ainda a corrupção, que é o desvio de bens e direitos públicos para atender a interesses privados. Comportamento criminalizado judicialmente, mas muito comum e impune [9]. A sonegação e o desvio de dinheiro para paraísos fiscais é outra ilegalidade, e roubo que os mais ricos praticam sobre o direito do povo [10]. Finalmente considero que só uma revolução política não resolveria, pois é preciso reeducar para a cultura comunitária e crítica social. Essas ideias apoiam-se em estudos teóricos, no diálogo acadêmico e em observações e estudos da vida social ao longo de anos. Por isso, embora não siga completamente os padrões, trata-se de um artigo científico.


REFERÊNCIA:
VALLIN, Celso. Farinhada comunitária. In: I Simpósio Nacional Educação, Marxismo e Socialismo. Belo Horizonte, MG : FAE, UFMG, 2016. Disponível em <https://www.simposioedumarx.com.br/edicao-atual>. Acesso em 2018.08.13



[1] O socialismo e o comunismo seriam opções ruins como falam?

Para finalizar o Primeiro Curso de Realidade Brasileira da Região Sul de Minas Gerais escrevi esse texto. Não é algo finalizado, muito menos poderá servir de base para estudos nos temas. O que posso assegurar são duas coisas. A primeira é que o movimento de querer escrever foi bom. Levou-me a novas leituras e procuras, bem como, permitiu-me uma reorganização dos pensamentos. A segunda é que sinto que pode ser uma boa provocação para quem quer seguir estudando, discutindo em luta por uma sociedade de iguais, sem classes.
O socialismo e o comunismo seriam opções ruins como falam? Ou poderiam nos levar a uma vida com melhor qualidade social? Revendo minha já avançada existência relembro os melhores momentos que já tive na vida. Não foram momentos muito intensos e passageiros, mas havia relações sociais verdadeiramente boas. Foram momentos e situações de amizade, de amor, de gratuidade, ou seja, aqueles nos quais as pessoas têm prazer em se ajudar, em estarem juntas, em fazerem algo conjuntamente. Procurarei refletir aqui sobre motivos e causas desses momentos serem raros em nossa sociedade, e entender e explicar porque as atividades organizadas dentro de uma forma comunitária seriam melhores do que as que em geral temos hoje, que são sempre organizadas do ponto de vista capitalista. De uma forma bem direta, o que quero defender é que na sociedade capitalista somos fortemente orientados para defender interesses individualistas, e quando há cooperação no trabalho, ela só é aceita se contribuir para o lucro do negócio em questão. Isso acaba sendo determinante em nossas ações e decisões. Constitui a base de nossa cultura. Muito já se escreveu sobre o socialismo e comunismo e não tenho pretensão explicar isso. Vou procurar falar da visão que construí para que tais ideias possam ser verificadas, discutidas, negadas, ou complementadas. Minha esperança é compartilhar estudos, vivências e pontos de vista para que outras pessoas se sensibilizem e também avancem em seus questionamentos sobre o jeito hegemônico de se pensar hoje.
Nos últimos anos venho procurado compreender como seria possível uma vida mais em comunidade, mais em sociedade. Conforme minha criação (ocidental, nos últimos cinquenta anos), tomo como certo que estou acostumado a viver no capitalismo. As ideias capitalistas estão implantadas nas lógicas de trabalho, e também nas de lazer, e em praticamente todas as atividades no meio social em que vivemos. Sei que mora em mim o reflexo dessas formas de pensar e agir. Históricamente, a sociedade brasileira viveu muitos anos em que era proibido falar bem da esquerda e com isso o comunismo era visto como algo pior que um crime. No período da ditadura civil-militar (1964-1985), declarar-se com pensamentos de esquerda era perigoso, visto que muitos sumiam. E olhe que eram os representantes do Estado que praticavam a tortura, assassinatos secretos e o terror (policiais e militares). Em suma: apesar da realidade e de todos os meios de comunicação sempre afirmarem que o jeito capitalista de organizar a sociedade seria melhor, as incoerências são gritantes e isso me levou a estudar e verificar a outra possibilidade, que talvez seja o comunismo. Lembremos que há coisas vizinhas do comunismo que são bem aceitas e tidas como bonitas e boas como comunhão, comunidade, comunicação ou gente comum. Esclarecendo para quem não souber, quem defende o socialismo e comunismo se diz “de esquerda” e buscam a igualdade social. As diferenças entre ricos e pobres vem aumentando, no Brasil e no mundo, de meio século para cá. A luta da esquerda contra a direita já é mais antiga. Mas de esquerda é quem defende a igualdade, a classe trabalhadora, ou o povo e não as grandes empresas e empresários. São seguidores das ideias de Karl Marx (Alemanha, 1818-1883), para quem o capitalismo leva os donos dos meios de produção ao enriquecimento extremo em função da venda do trabalho alheio.
[2] O mundo mudou. Quem entende o mundo de hoje?
O mundo mudou. Quem entende o mundo de hoje? Grandes avanços da ciência e tecnologia entre 1850 e 1980, grosso modo, poderiam ter trazido melhorias a nossas vidas. A humanidade criou máquinas que fazem coisas que antes só eram possíveis com grande esforço. Historicamente, para aliviar os humanos da necessidade de esforço físico e penoso, foram usados cavalos e outros animais para o trabalho e a produção de bens e serviços. Inventamos a máquina a vapor, usada em trens e outros. Nos anos 1900 foi desenvolvido o motor a explosão e a partir disso criaram-se máquinas que não existiam antes, e que hoje são a base da vida da maioria de nós, como os automóveis, caminhões, ônibus, motocicletas, e os tratores que permitiram a construção de estradas. Surgiram também os materiais plásticos (derivados do petróleo) que possibilitaram a existência de máquinas mais leves e melhores. Hoje temos plásticos que resistem ao calor. Essas máquinas todas, permitem hoje que muitas pessoas morem numa cidade e trabalhem ou estudem em outra, devido ao transporte, veículos e estradas. Elas dão condições para mudanças no modo de vida, e na estrutura da família e da sociedade.
De 1980 para cá passamos a ter os microcomputadores. Eles sofreram avanços e estão agora embutidos em muitas outras máquinas. O computador permite as programações. Por esse meio a tomada de decisões e o acionamento de comandos nas demais máquinas tem sido feito, sempre que possível, sem precisar de pessoas. E dessa forma as máquinas substituem o trabalho humano não somente em tarefas de esforço físico, mas também em serviços que são mais burocráticos ou dependem de operações abstratas, de lógica. Algumas preocupações ou operações que antes dependiam de pessoas, agora fazem parte de rotinas que são verificadas por máquinas que passam a ações por elas mesmas, facilitando nossa vida. Poderíamos citar muitos exemplos como o de uma máquina de lavar roupas, que coloca a água e o sabão em quantidades medidas, bate um pouco a roupa, deixa de molho por alguns minutos, torna a bater, torce... Tantas outras possibilidades vieram com os dispositivos móveis (celulares, táblets...) e a internet.
[3] Ricos oprimem pobres. Cultura capitalista oprime todos.
As máquinas são resultado dos avanços da ciência e tecnologias. Isso implica, em nível mundial, em menor necessidade de trabalho humano, ou em maior disponibilidade de produtos e serviços para nosso bem estar. Por isso, era de se esperar que as pessoas, em geral, estivessem vivendo melhor. Com o avanço das máquinas, poderíamos trabalhar um dia a menos na semana, ou trabalhar sem tanta pressão, sem pressa e com mais prazer. Mas, parece que vem acontecendo é o inverso! Cada vez mais as pessoas sentem que deveriam dar mais de si mesmas. Uma palavra muito citada hoje é “a correria”. Todos falam da “correria” em que estão envolvidos. Dizemos, para nós mesmos, que o problema é a correria. Isso é usado como justificativa para explicar porque não conseguimos fazer algumas coisas que gostaríamos, porque não somos donos do nosso tempo, de nossa vida. Fala-se também da “falta de tempo”, mas os dias continuam tendo vinte e quatro horas!
O professor Ricardo Antunes estuda as relações de trabalho na contemporaneidade. Ele reafirma que o trabalho abstrato é estruturante também no mundo de hoje, globalizado.
Os produtos da Toyota, da Nissan, da General Motors, da IBM, da Microsoft, etc., são resultados da interação entre trabalho vivo e do trabalho morto, por mais que muitos autores, de novo Habermas à frente, digam que o trabalho abstrato teria perdido sua força estruturante na sociedade atual. À guisa de polêmica: se o trabalho abstrato (dispêndio de energia física e intelectual, conforme disse Marx em O Capital), perdeu a sua força estruturante na sociedade atual, como são produzidos os automóveis da Toyota, quem cria os computadores da IBM, os programas da Microsoft, os carros da General Motors, da Nissan, etc., só para citar alguns exemplos de grandes empresas transnacionais? (ANTUNES, 1999, p. 115)
Antunes afirma que as ideias de “O Capital” ainda valem, e que temos que pensar em uma classe trabalhadora ampliada. O proletariado hoje inclui novos papéis. Na luta de classes, vêm sendo criadas novas formas de exploração da pessoa pelo trabalho, em serviços sem horário certo, que nos levam ao trabalho sem parâmetros e sem direitos trabalhistas. O migrantes que fazem o corte da cana, ou a “panha” do café em nossa região são exemplo de ganho por produção. Assistindo ao documentário Carne e Osso (<http://youtu.be/imKw_sbfaf0>) vemos pessoas que são contratadas por produção, e seguem demandando tanto de si mesmas que acabam adoecendo pelo trabalho. Temos até uma doença nova chamada Lesão por Esforço Repetitivo. Trabalhadores temporários e precarizados devem ser vistos como da classe-que-vive-do-trabalho. É o caso do estudante que trabalha algumas horas para o McDonalds. Mesmo professores, vêm sendo contratados para a educação a distância sem local e horário de trabalho e pagos com bolsas, sem férias, sem seguro saúde... Enfim, enquanto se poderia esperar uma melhoria da qualidade de vida, vemos nascerem novas formas de exploração humana pelo trabalho. São adaptações do capitalismo, que renasce e permanece. Continuamos a ter as duas classes: proletários e burgueses. Proletário vem de prole e de pessoas que não tendo propriedades teriam somente seus filhos para ajudá-los como força de trabalho. Proletariado é a classe trabalhadora, ou classe-que-vive-do-trabalho. São os que vendem sua força de trabalho para alguém, ou instituição que possui os meios de produção.
Conforme a lógica de produção que vivemos hoje, pelo estabelecimento de propriedades e proprietários, os capitais financeiros, commodities, e outras formas de poder de certas pessoas sobre outras, alguns poucos desfrutam de privilégios quase sem limites, enquanto que grande efetivo de pessoas é lançado à miséria, à opressão, subserviência, ou à correria e sentimento de impotência diante de sua vida. Grande parte das pessoas encaixa-se numa condição de trabalho alienado. Essas pessoas sentem-se exploradas, ainda que sejam um elo da cadeia de produção e consumo, e tenham algum bem estar em suas vidas. Não sentem-se livres, pois só terão lugar enquanto aceitarem estar servindo ao sistema, que depende dos proprietários dos meios de produção, e dos meios financeiros.
Em relação à dificuldade para se ter vida social com qualidade existem dois aspectos que precisam ser observados separadamente. O primeiro está na relação entre os ricos e os pobres. Em nosso meio existem alguns, que poderíamos chamar de “folgados”. Esses vivem mandando e sendo servidos, como príncipes, princesas, reis ou rainhas. Não vivemos mais a monarquia há séculos, mas é como se alguns fossem da corte. Há pessoas acostumadas a dar ordens e tratar trabalhadores como se fossem servos. Algumas conseguem tirar férias em “resorts” com “all inclused”, com guias, monitores de recreação, garçons... Algumas possuem carros, casas, empresas... Enquanto isso há uma grande quantidade de trabalhadores que servem essa “monarquia”, os mais pobres, que acordam cedo todos os dias, trabalham o dia todo, mas ganham só para comer e dormir. Há “folgados” que dizem que isso acontece porque aquelas pessoas não têm “qualificação”, ou estudos. O mínimo que podemos dizer é que fazem trabalhos que são mais que necessários e úteis, e que os mais ricos servem-se desses trabalhos. Os estudos de Florestan Fernandes ajudam a entender como se formaram historicamente essas desigualdades, desde os tempos em que as terras do Brasil de hoje eram usadas como colônias de Portugal, e muitos de nosso povo eram escravizados.
Tais setores coexistem com a massa dos despossuídos, condenados a níveis de vida inferiores ao de subsistência, ao desemprego sistemático, parcial ou ocasional, à pobreza ou à miséria, à marginalidade sócio-econômica, à exclusão cultural e política, etc” (CSAL, 37). Trata-se de “uma realidade sócio-econômica que não se transformou ou que só se transformou superficialmente, já que a degradação material e moral do trabalho persiste e com ela o despotismo nas relações humanas, o privilégio das classes possuidoras, a super concentração da renda, do prestígio social e do poder, a modernização controlada de fora, o crescimento econômico dependente, etc” (CSAL, 42). (LIMOEIRO-CARDOSO, 1995, p.5)
Por ai percebemos que as raízes da organização social e dos comportamentos são mesmo dos tempos em que o Brasil dependia do rei. Havia príncipes, nobres, escravos e servos. Mas é bom lembrar que Marx e Engels afirmam que “A história de toda sociedade até hoje, é a história da luta de classes” (FERREIRA, 2007, p. 151), e eles não conheciam o Brasil e escreveram isso nos anos 1800. Esse é o panorama da diferença entre ricos e pobres.
O segundo aspecto nessa análise da vida social, é que existindo uma larga escala entre os mais ricos e os mais pobres, mesmo quem não é tão pobre está sujeito à lógica capitalista, e isso piora a vida social. A pessoa vive na “correria”, e sente-se insatisfeita com sua condição econômica. Quer sempre mais. E o pior: em geral, tanto as mais pobres quanto as menos pobres, dificilmente têm oportunidade de conviver em ambientes e situações de boa coesão social – com relações verdadeiramente comunitárias, de solidariedade, de cooperação, de ajuda mútua, de graça. Entre os poucos círculos sociais em que se vive a gratuidade podemos citar a família e alguma relação de amizade mais próxima. Mesmo o núcleo familiar vem sendo abalado pelo jeito capitalista de organizar a vida. Ultimamente as famílias têm diminuído a quantidade de filhos. Há pessoas que dizem que um filho custa caro, ou que não têm dinheiro para terem um filho. Muitos nem têm irmão ou irmã. E por isso haverá os que não terão nem tios, nem primos, nem tias. E vem acontecendo certo isolamento pelo individualismo no consumo de TV, internet e outros meios de comunicação. Mesmo debaixo do mesmo teto tantas vezes as pessoas vivem isoladas, de forma individualista.
[4] A correria e capitalismo é a mesma coisa
Entendo que a explicação para quase tudo isso está no jeito capitalista como somos educados. Para compreender melhor, seguiremos examinando algumas atitudes que fazem parte da base desse comportamento, capitalista. São elas (a) o individualismo; (b) o produtivismo (c) a competitividade; (d) a padronização; (e) a modernização.
(a) O individualismo é o “cada um por si”, a falta de sentimento de pertencimento a algum grupo social, a desvalorização das coisas públicas, comuns, coletivas. Se antes a rua, que é um lugar público, lembrava brincadeiras e encontro com amigos agora é vista como local de insegurança. Nas praças ou nos ônibus as pessoas não conversam com os outros. Os automóveis, a maioria circula com um só passageiro. Se pertencemos a um grupo de trabalho, ele não é nosso propriamente, visto que pouco ou nada participamos das decisões, e não temos participação nos lucros e resultados. Para Frigotto e Ciavatta (2006) desde meados de 1990 vivemos um agravamento e reinvenção do capitalismo, aumentando a exploração do trabalhador, regredindo em conquistas sociais como a regulamentação da jornada de trabalho e outras, e com alterações no sistema educacional que acabam por formar uma cidadania individualista, voltada para a produção. Os jovens, cada vez mais, são preparados para atuarem no mercado de trabalho, para produzirem mais rapidamente, sendo competentes, incorporando avanços da ciência e da tecnologia. Mas “o termo produtivo se refere ao trabalhador mais capaz de gerar mais-valia – o que significa submeter-se às exigências do capital que vão no sentido da subordinação e não da participação para o desenvolvimento de todas as suas potencialidades” (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2006, p.63). Desenvolvem, quando muito, um sentido de cidadania individual, na qual não existem preocupações nem responsabilidades com o coletivo da sociedade. Em relação aos direitos humanos, quando muito, aprendem a ver somente os direitos particulares do indivíduo, dissociado de sua comunidade 1(idbem, p. 67). Falta o sentido de cidadania coletiva que é a superação da cidadania burguesa, o que inviabiliza a plena emancipação humana. Citando Marx em Trein escrevem:
Somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato e se converte, como homem individual, em ser genérico, em seu trabalho individual e em suas relações individuais; somente quando o homem tenha reconhecido e organizado suas “próprias forças” como forças sociais e quando, portanto, já não separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a emancipação humana (Marx, id. ibid: 52, grifos do autor). (FRIGOTTO; CIVATTA, 2006, p. 67)


Os vários espaços de convivência social que temos são capturados pelas lógicas capitalistas.
Nas férias, muitos estão adotando o padrão CVC de viagens turísticas. As pessoas viajam e instalam-se em hoteis já reservados para um grupo. Dia a dia são levadas a locais “turísticos”. Há horários e programações bem estabelecidas que o grupo deve cumprir. Tudo é belo e incrível como se as pessoas estivessem realmente no filme a “A Ilha da Fantasia”, mas voltado para participação individual. A socialização, quando há é fraca. Férias tornou-se pacote que é um produto a ser negociado. Tudo é comodo pois só depende de pagamento, mas também nossa participação nas programações e realização é quase nula.
Mesmo os que se preocupam com a caridade, ou o amor ao próximo, contaminados pela lógica e pensamento capitalista cometem distorções. Algumas vezes, pensando em ajudar os mais necessitados praticamos o assistencialismo, como se a doação de algum produto significasse o amor ao próximo. As empresas falam de responsabilidade-social, mas não há responsabilidade verdadeira com as relações sociais. Algumas fazem propaganda de suas ações benevolentes para melhorar a imagem e obter mais lucros. Melhor do que doarmos algo tirado de nós em troca de um lugar no céu, é a solidariedade plena, expressa em trabalhos de cooperação, em parceria, em igualdade; a expressão do amor coletivo na socialização.
Os eventos ditos culturais na visão capitalista são como o consumo de aparatos criados pela chamada indústria cultural. É o caso do cinema. Pensemos num filme que acaba de ser lançado, do qual a grande mídia está fazendo muito propaganda, e a população está repercutindo. Muitas pessoas têm sua vontade capturada. Ao assistir um filme nos colocamos em posição passiva, neutra. Um evento cultural verdadeiro deveria envolver outras relações. A verdadeira cultura é a curtição da expressão de pessoas de nosso grupo de convívio social, e deveria incluir atos criativos e participação na apresentação artística. Em certos momentos até podemos curtir aparatos culturais gravados ou de pessoas de fora de nosso convívio mais próximo, mas não podemos perder a dimensão da participação, da troca social, de nossas identidades, de nosso pertencimento em grupos sociais.
A torcida esportiva é um divertimento muito praticado pelo mundo todo, hoje. Muitos torcem para os grandes clubes de futebol, ou para os pilotos de Fórmula 1. Em geral o torcedor não joga. Somente assiste os jogos pela TV, e “participa” dos comentários pela TV ou rádio. Nessa situação a coesão e participação social é pouca, é fraca. Há muitos comportamentos alienados e dominados. Já a torcida de quem vai ao campo de futebol e faz parte de um grupo, para muitos, é o auge de suas oportunidades de participação social. Dai a grande alegria em torno de tais momentos.
A escola, apesar da grande mídia ressaltar só notícias ruins, talvez seja o ambiente de melhor socialização de que as crianças e jovens podem dispor hoje. É geral a afirmação de que gostam dos espaços que são criados nos intervalos das aulas. Mas a aula mesmo tem servido mais para passar informações, desenvolver habilidades e competências, e em geral, é voltada para a individualidade. Cada um em sua carteira, olhando para frente. Não podem conversar, devem prestar atenção ao/à professor/a ou fazer exercícios individualmente. A escola permite uma boa convivência social, mas ensina o individualismo e a competitividade. As viagens turísticas, os atos assistencialistas, os eventos ditos culturais ou a torcida pseudo-esportiva são expressões da cultura capitalista. Além do individualismo, possuem também bases produtivistas, de competitividade, de padronização e de modernização.
(b) O individualismo é associado ao produtivismo. Esse é o sentimento de que devemos aumentar a produção das coisas com as quais estamos envolvidos. A palavra “desenvolvimento” é associada ao crescimento econômico, ao aumento anual da produção de um país, ou instituição. Conforme essa ideia não podemos “desperdiçar” tempo. Tempo é dinheiro. Dai, não se pode ficar discutindo ou refletir críticamente sobre as situações, para não perder produção, ou não diminuir o tanto que conseguimos produzir. A lógica instituida faz crer que devemos seguir decisões técnicas, vindas de fora, que seria melhor fazer algo sem questionamentos, e que não se pode abrir espaços para reflexão coletiva, que é vista como polêmica. Produtivismo é querer sempre mais, maior. É mais do mesmo.
(c) A competitividade começa pelo princípio da livre concorrência. Por nossa educação social, hoje, parece inquestionável que as empresas tenham o direito de vender seus produtos pelos preços que quiserem. Mas existem condições muito desiguais, e quanto maior a complexidade da produção, devido aos progressos da ciência, tecnologias e organização industrial-comercial, mais difícil que pessoas ou empresas pequenas possam concorrer em igualdade com as maiores. Não poderemos nos aprofundar em análises de produção e mercado nesse artigo. Um exemplo dessa desigualdade pode ser a publicação e distribuição de um filme de cinema ou TV. A distribuição e a propaganda dão as condições para a desigualdade. Dessa forma uma produção milionária de roliúdi (Hollywood) tem grande possibilidade de ser assistida por milhões de pessoas no Brasil mesmo quando a crítica aponta que é ruim, enquanto que uma produção brasileira com poucos recursos, mesmo que seja boa e interessante, é pouco conhecida e assistida (como foi o caso do filme Cine Holliúdy, Comédia Romântica, produzido em 2013, que fala da vida no interior do Ceará). Por outro lado, acreditando que a concorrência seria mesmo livre, seguimos em busca da otimização de resultados, pela ideia de que devemos encontrar o melhor modo para fazer as coisas, economizando ao máximo, não desperdiçando nem materiais nem tempo. Por isso entendemos que devemos ser melhor que os outros, termos um produto que supera os concorrentes. A ideia de competitividade leva as pessoas a se preocuparem em superar a elas mesmas, e finalmente a sentirem-se mal porque são colocadas metas sempre além do que seria facilmente conseguido. A competitividade foi aguçada após os anos 1990 com a abertura para o comércio internacional, ideias como a reengenharia, reestruturação produtiva, mecanização, informatização e as possibilidades ampliadas de articulação entre locais distantes, pelo mundo inteiro: a globalização. Hoje, o rearranjo de um trabalho na China pode decretar o fechamento das oportunidades de trabalho no mercado de um cidade qualquer do interior do Brasil. A crença de que existe uma livre competitividade colabora para a autocobrança produtivista. Mas na verdade o que temos é uma competição viciada.
(d) A ideia de padronização está por trás das marcas e franquias (como o Cinemark; a M.Officer; a TIM, Apple, Google...) e também pelos procedimentos padronizados e pelo endeusamento da técnica. Tal modo de pensar coopera para desvalorizar a atividade criativa e o pensamento crítico e até inviabilizar os talentos e culturas regionais. Trabalha contra a diversidade cultural. Fala-se do mundo como se fosse uma aldeia global. A padronização colabora para os comportamentos colonizados, de “bom gosto” e “bem comportados”. Já dizia Adriana Calcanhoto: “não gosto de bom gosto”. O produtivismo é parceiro da padronização. Ao contrário, para as pessoas em geral, seria melhor valorizarmos regionalismos. Diversidades culturais significam distribuição de poderes e de inteligências e são o contrário de centralização, de jeito único de pensar, ou de fim da história. Também na Europa isso é percebido e existe a crítica à padronização global, em defesa dos valores locais. Vejamos o que dizem a respeito dos currículos escolares:
Embora, neste momento, a tentativa de construir um território curricular europeu se circunscreva mais a referenciais de estrutura organizacional do que à uniformização dos conteúdos programáticos, tudo indica que, a seu tempo, as opções curriculares acabarão por enfraquecer as territorialidades curriculares nacionais, regionais e locais a favor da legitimação de um conhecimento escolar internacional que represente não só as metas educativas e formativas que cada nação deve concretizar no quadro da Comunidade Europeia, mas também os interesses de certos sectores de influência e dos grupos sociais e económicos dominantes que se movem nesse contexto. (MORGADO, 2010, p. 257)
Até a escola segue a ideia de padronização internacional.
(e) A modernização é outro defeito do nosso modo de pensar, em geral. Fala-se de ser moderno ou da importância de ser uma pessoa atualizada, e isso acaba instabilizando valores tradicionais de qualquer tipo, não pelo desmérito ou pela superação, mas só porque existe algo mais recente, que está na moda. Isso favorece a obsolescência de produtos. Esse modo de pensar leva ao consumismo, ou hábitos exagerados de consumo, à compulsão por compras e por produtos recém lançados. Quando se pensa na educação continuada das pessoas, a modernização leva cada um a informar-se para mostrar-se atual, leva à reprodução acrítica de novos procedimentos e habilidades técnicas, e ao exibicionismo dessas habilidades, produtos ou informações e desfavorece o aprender crítico, e pessoal, de experiência feito. Por isso devemos sempre desconfiar, duvidar, ser críticos. Nem sempre o “padrão fifa” será algo melhor. Nem sempre o que é internacionalmente aceito e usado, que dizem ser o mais desenvolvido, será melhor para nós. Cortella fala de uma obsessão evolucionista (2003, p. 51). Para ele o inconsciente coletivo do mundo ocidental se apoia em três ideias equivocadas: a de que o passado é sinônimo de atraso e de ignorância inocente, a de que a racionalidade sempre nos levará a progressos, e a de que a ciência levaria sempre ao bem.
Pode haver outras, mas essas cinco ideias estão na base do capitalismo, advém da lógica do lucro, e ajudam a entender o que estamos chamando de cultura capitalista, jeito capitalista de pensar. São ideias cultivadas e realimentadas constantemente em nossa cultura – individualismo, produtivismo, competitividade, padronização, modernização.
[5] Ainda existem organizações comunitárias
Para Christianne Gomes os momentos de lazer e os eventos lúdicos são as melhores situações para experiências interculturais revolucionárias e isso pode ser uma importante dica para a educação transformadora. Existem certos espaços de organização social (de lazer e cultural) que produzem possibilidades de relações sociais muito melhores do que as que encontramos no convívio social costumeiramente. O “ lazer pode ser uma (e não a única) ferramenta muito importante para mobilizar experiências interculturais revolucionárias, contribuindo assim com uma educação para a transformação social e cultural” (GOMES, 2010). Nessa busca, por anos, de relações sociais e de relacionamentos melhores entre as pessoas, situações que sejam mais comunitárias, hoje considero que tenha encontrado/percebido algo realmente importante. Consigo identificar situações sociais (várias), que ainda existem em alguns lugares e resistem, praticadas com a naturalidade das coisas que fazem parte da cultura, nas quais a lógica de base não é capitalista e sim comunitária. Esses exemplos podem significar para nós todos que é perfeitamente possível viver de uma forma mais comunitária e com maior felicidade. Vou falar da Folia de Reis e da Farinhada Comunitária. Mas poderia falar também das Escolas de Samba, do Congado, do Bumba Meu Boi, das Festas Juninas, do trabalho voluntário e certamente existem outras situações como essas.
Sei que não vou conseguir explicar bem o que acontece na Folia de Reis porque eu nunca fui integrante de um grupo desses. Sou somente observador. Mas o que pude perceber é que as pessoas falam com grande entusiasmo dessa festa comunitária. Olhando somente a festa, não dá para se entender completamente. É bonita, interessante, mas a aparência não explica a alegria com que os participantes falam e participam da festa. O motivo, entendo que venha das oportunidades de convivência comunitária e gratuita que são gerados desde os momentos anteriores à festa, meses antes, quando as pessoas se reunem em preparação a ela. Ali vão se estabelecendo contratos de parceria e de responsabilidade voluntários e espontâneos. Não existe uma relação de lucratividade, nem de recompensas formais, nem alguém que explore o trabalho dos outros. É importante observar que as pessoas trabalham para fazer roupas e para ensaiar cantos e danças, mas não receberão nenhum salário, ou favor em troca disso. E não é trabalho escravo, pois vai quem quer, e tudo é feito pelo prazer da participação. O modo de aprender e ensinar sobre a festa não separa as pessoas por idade, não tem horário certo, nem um planejamento duro. Tudo é informal e com flexibilidade. Mas existem estruturas condicionantes que são habituais. A Folia é um todo que se compõe por grupos menores. A pessoa que é convidada ou aceita para fazer parte de um grupo sente-se lisonjeada, porque acreditaram nela, porque o grupo quer sua participação. Durante dias e dias as pessoas daquele grupo se encontram e convivem em clima de liberdade e graça ao preparar roupas, cantos, danças e outras coisas que farão parte da festa. No dia marcado, realizam tudo o que foi preparado, em conjunto, e são vistos pelo restante da comunidade. A festa acontece nas ruas mas é como num palco, em que as pessoas se apresentam e são vistas e admiradas. Ficam felizes por terem se apresentado e receberem elogios. Mais que o dia da festa, todos os dias de preparação constituem o interesse e prazer das pessoas em participar. Fazem com que sintam-se pertencentes a um grupo social. Criam laços comunitários de afeto, respeito, competência... Enfim, uma experiência dessas merece ser estudada em separado. O certo é que os participantes sentem grande felicidade ao se articularem em grupos de trabalho comunitário.
Durante um certo tempo eu observava experiências como a Folia de Reis e imaginava que aquelas relações de felicidade e gratuidade só fossem possíveis para festas, ou eventos diferentes do “trabalho socialmente necessário”. Mas em janeiro de 2014 tive a oportunidade de conhecer a Farinhada Comunitária que, embora os participantes relatem que é algo tão prazeroso quanto uma festa, tem o objetivo de produção de farinha de mandioca para alimentação, e portanto é um trabalho pela necessidade da subexistência. Participei do Projeto Rondon, no interior do Maranhão, município de Barão de Grajaú, a 7h por estrada de rodagem de São Luiz. A farinhada comunitária é um exemplo de que o trabalho por organização não capitalista é possível. As pessoas afirmaram que é melhor do que novela pois, naqueles dias, nem lembram de ligar a TV. Um grupo de pessoas da comunidade trabalha em mutirão na produção da farinha, a partir da colheita de mandioca. A farinha resultante pertencerá somente à família que a plantou. O trabalho de todos naqueles dias não é cobrado nem recompensado. Existe sim uma ajuda mútua. Outras pessoas do grupo também plantam mandioca e receberão ajuda comunitária quando fizerem sua colheita. Mas não há um parâmetro para medir quanto cada pessoa trabalhou, quanta mandioca foi trabalhada. Não existe a preocupação capitalista de medir o trabalho e a produção, nem há salários, nem lucro. Até pessoas que não plantam mandioca gostam e querem participar, visto que são momentos de convivência com boa coesão social, e que as pessoas sentem o prazer de ajudar, e de terem sua presença e participação reconhecidas pelo grupo. Existem cantorias para alegrar certos momentos. Os trabalhos são vários. No primeiro dia as pessoas descascam a mandioca. Cada um/a leva o seu banquinho, sua faca, que são os instrumentos de trabalho. Algumas coisas são mais para os homens e outras são geralmente feitas pelas mulheres. Destaca-se uma outra relação de trabalho, que não é capitalista, mas comunitária, e as pessoas trabalham com prazer e harmonia. O trabalho dessa forma é percebido pelas pessoas como algo melhor do que o divertimento mais usual: a novela da TV!
Ligando com as ideias de Christianne Gomes, entendemos que essas, cada vez mais raras, expressões culturais tradicionais como a Folia de Reis e a Farinhada são exemplos de situações reais de lazer e de trabalho comunitário que podem levar as pessoas a compreenderem a acreditar numa sociabilidade diferente da capitalista. Não adiantaria pensarmos em criar grupos de Farinhada ou de Folia de Reis em lugares em que essas manifestações não são tradicionais. É possível sim, procurar, em cada local, coisas semelhantes que possam ser vistas como sementes de uma nova socialização. Trabalhar essas sementes, nos leva à esperança de que elas poderão significar a base de grandes mudanças. Mas não temos ilusões de que manifestações como as tradicionais sejam espaços de forte consciência contra a cultura capitalista. Para tanto, será imprescindível ainda o apoio de uma educação para além do capital (MÉZSÁROS, 2008). Um trabalho de educação com “contrainternalização” ou contraconsciência. E isso é um novo assunto, o qual não aprofundaremos aqui.
[6] Capitalismo na universidade, relação com a natureza e grande mídia
Para completar o olhar sobre a organização capitalista em nossas vidas hoje, é preciso considerar sua relação com a universidade, com a natureza e com os meios de comunicação. Observamos que a cultura capitalista está também nas universidades, um dos ninhos da ciência e tecnologia. Existe uma lógica que envolve financiamentos que patrocinam pesquisas e determinam direcionamentos. De diferentes formas influenciam e chegam a determinar como serão os parâmetros de avaliação de resultados e as políticas de ação na educação e nas universidades. O capital econômico, por estratégias complexas e nem sempre claras, torna-se proprietário das decisões maiores na universidade. Hoje é geral a queixa de docentes sobre as pressões produtivistas no trabalho universitário. Por isso é importante estabelecer bases nas universidades para se contrapor ao produtivismo. No encontro “MST e a pesquisa” na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), em 2014, discutiu-se a importância da sintonia da formação com os desafios da realidade, e a reconstrução das bases culturais política, agroecológica, social... O tão falado tripé ensino-pequisa-extensão se tornaria real, considerando-se que os problemas e desafios sociais e produtivos de certa comunidade seriam a base de projetos interdisciplinares, interdepartamentais e interinstitucionais; o ensino e estudos se desenvolveriam pela resolução de problemas da realidade prática; e naturalmente esses estudos seriam também pesquisa e diálogos de extensão universitária. Nessa perspectiva reconhecemos a importância dos laços que vêm sendo criados entre professores da Ufla, da Unifal, do Ifsuldeminas, e integrantes do MST, em torno de projetos que se realizam nas áreas de acampamentos e assentamentos da região do Sul de Minas, e tantos outros militantes de movimentos sociais que fizeram parte do Curso de Realidade Brasileira local.
Em nossa relação com a natureza também temos problemas devido ao modo capitalista de organização social. A lógica de produção, consumo e desenvolvimento que vem sendo praticada, e que é a matriz do capitalismo, desrespeita, degrada e destrói a natureza. Não se sustenta. Pela lógica do lucro pratica-se a monocultura, o uso de venenos e fertilizantes químicos, o uso de sementes transgênicas, e um modelo de organização produtiva que vem aumentando a dependência dos pequenos produtores em relação a grandes corporações internacionais, fabricantes de venenos, sementes modificadas e fertilizantes químicos. Nesse sentido existe um movimento pela agroecologia que busca se afirmar, em contraposição ao agronegócio e à produção para exportação.
Vemos ainda que, diante da complexidade da sociedade atual os meios de comunicação de massa (mídias) fazem parte do centro do poder. Sendo assim, naturalmente são disputados pelos grandes grupos empresariais e econômicos. Não somente para a propaganda de seus produtos, mas para um noticiário que ampare suas ações e arrumações sociais, e ainda uma programação novelística e de arte que também sirva de ancoragem para o modo capitalista de pensar. A má fama dos políticos e a imagem de respeitabilidade das grandes marcas é uma construção subjetiva, realizada com o apoio dos meios de comunicação de massa (TV, web, jornais, rádio etc.). É fácil entender que esses espaços de comunicação sejam disputados e dominados pelos grupos mais poderosos da sociedade hoje. Alguns fatos como os que são citados nesse trabalho, cuja referência é o jornal Brasil de Fato, não são mostrados pelos jornais de maior circulação. Em contraposição, as esquerdas devem entender que também precisam ocupar os espaços de comunicação de massa. Mas, se há tantos problemas como explicar que o capitalismo renasce e está cada vez mais forte?


[7] Grandes capitalistas e a roubalheira dos bens públicos.
O que sustenta e reforça a cultura capitalista são seus poderes. O poder do capitalismo está em muitos lugares: desde os empresários, donos dos meios de produção de bens, incluindo os investidores ou banqueiros, passando pelos governos nacionais, organismos internacionais, a universidade, meios de comunicação de massa... Em nossa cultura é comum que se fale mal dos governos, dos governantes e da classe política, e ao mesmo tempo as grandes empresas nacionais e transnacionais gozam de uma imagem de respeitabilidade, como se fossem justas e éticas. Mas a realidade não condiz com as imagens e sentimentos que, em geral, as pessoas têm. O poder público, o poder de decisão e mando nas coisas da sociedade está nas mãos do que chamamos de políticos. Nessa classe incluímos as pessoas e instituições do poder executivo (governos federal, estaduais e municipais) bem como o poder legislativo: deputados, senadores, vereadores. O judiciário escapa dessa má fama. Mas na realidade podemos perceber que as grandes corporações nacionais e transnacionais têm mais poder que os governos e que acabam por controlar e manipular a classe política. A roubalheira dos bens públicos sustenta e reforça o poder dos capitalistas. Embora as corporações e grandes empresas consigam criar uma imagem de respeitabilidade na sociedade, existe uma forte apropriação dos recursos públicos (dinheiro) em benefício dos grupos mais poderosos. Essa apropriação é indevida, antiética, ilegal, e é o que podemos chamar de roubalheira. Em geral, o povo não associa uma dessas empresas a suas desgraças ou falta de condições de vida. Mas isso acontece e precisamos tomar consciência para nos contrapor. A roubalheira se realiza por três vias: (a) O falseamento da democracia; (b) corrupção; (c) sonegação de impostos.
[8] Falseamento da democracia
O falseamento da democracia acontece pela manipulação das campanhas eleitorais, e pela cooptação ou parceria de empresas com pessoas que são eleitas para cargos políticos. O primeiro ponto que destaco é o financiamento de campanhas eleitorais. Hoje é difícil que os candidatos consigam se eleger se não contarem com certa quantidade de dinheiro para sua campanha. Por outro lado, uma campanha bem-feita, consegue eleger um candidato pouco conhecido com certa facilidade. E uma boa campanha eleitoral pode ser conseguida com dinheiro. Assim, quem tem grande poder econômico acaba fazendo doações aos candidatos e com isso dá condições para sua elegibilidade. Mas, com que propósito estariam fazendo tais doações? Será que tais empresários conseguiriam recuperar o dinheiro gasto com a ajuda dos candidatos, depois de eleitos? Existe no país, há tempos e tempos, uma elite que consegue eleger candidatos aos mais altos cargos de poder da nação, por meio do financiamento de campanhas eleitorais e estratégias de “marketing” político.
Passadas as eleições os grandes grupos, nacionais e transnacionais, por meio do controle que exercem sobre os governantes, conseguem fazer aprovar leis e programas de governo a seu favor. Segundo o jornalista Alceu Luis Castilho, o Brasil tem um sistema político ruralista. Ele fez uma pesquisa meticulosa por mais de três anos. Observou mais de 13 mil declarações de bens e concluiu que, entre 2008 e 2010, setenta e sete políticos eleitos têm em seu nome mais terras do que o país Porto Rico. Observa ainda que a empresa JBS-Friboi foi uma das que fez mais doações para campanhas de políticos. Depois, na votação em 2011 do Código Florestal, da bancada de eleitos entre os que receberam doações, só um deputado votou contra o projeto (BRASIL DE FATO, 2012, p. 7).
A política é comprada ou corrompida pelo capital. As leis e programas de aplicação de recursos públicos são direcionados mais para favorecer aquela elite e seus negócios do que o povo. No final do ano passado a Odebrecht conseguiu que Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) “comprasse” uma parte (Subsidiária) daquela empresa, envolvendo um bilhão de reais, após “vencer” a concessão para exploração do aeroporto do Galeão. As pessoas ficam à merce de tais lógicas, sentindo-se impotentes. Dentro da legalidade, mas invadindo campos antiéticos e até ilegalidades, esse poder econômico segue se apropriando de decisões e bens públicos e até determinando votação de leis que os beneficiarão. O problema não é só porque sejam donos dos meios de produção, mas o controle hegemônico que exercem sobre a sociedade, e a roubalheira na luta pelo poder. Nesse jogo político conseguem a liberação de fundos de programas, para favorecer suas empresas e interesses; conseguem a aprovação de orçamentos, projetos e programas que os favoreçam. Essa elite acaba tendo mais poder que os governantes eleitos. Subverte o poder público em benefício próprio, mas não visando o bem do povo em geral. Para nos contrapor ao falseamento da democracia e das eleições, precisaremos formar pessoas mais conscientes, dar maior importância às eleições e aos partidos, escolher candidatos por critérios melhores e não nos deixar influenciar tanto pelo “marketing” político. Mesmo as votações e decisões públicas poderiam funcionar com maior participatividade. A participação popular não deveria ser somente nas eleições. Poderíamos ter uma democracia mais participativa. Precisamos educar o povo e a nós mesmos para a participação na política e para uma política de maior abertura à participação popular.
[9] Corrupção
A corrupção é outro meio pelo qual grandes corporações obtém vantagem econômica, o que significa que estão desviando dinheiro do povo para seus interesses particulares. O desvio de dinheiro público para atender a interesses privados, é absolutamente criminoso. O que deveria ser usado para atender o povo em geral é desviado para favorecer os que têm poder, que são os que já detém os maiores capitais. A mídia (TV, jornais, revistas, rádio) culpabiliza o governo. É comum que, ao criticar a roubalheira da corrupção, se defenda, sutilmente, a ideia de que a solução seria termos menos poder público e mais iniciativa privada. Não se fala dos corruptores. É certo que quem compra um governante corrupto é alguém que tem dinheiro para tanto. Também é certo que o corruptor irá ganhar muito mais do que paga, visto que se fosse dar no mesmo seria melhor não se arriscar. Em nossa cultura o corruptor fica escondido da comunicação de massa e do senso comum. Mais do que ficarmos contra o governo e o Estado, precisamos nos colocar contra a bandidagem e entender que há grupos de poder econômico que estão por trás dos governantes.
[10] Sonegação
Finalmente a sonegação é outro artifício da bandidagem dos poderosos. Essa elite é proprietária de grandes corporações internacionais. Por trás de uma imagem de respeitabilidade existem operações duvidosas, secretas ou ilegais como a evasão de divisas para paraísos fiscais, subtraindo do devido imposto, ou da cota de participação pública, como nessa notícia: “Sonegação dos ricos é 25 vezes maior que corrupção nos países pobres” (BRASIL DE FATO, 2014, p. 14). Existem trabalhos de convencimento da população que tentam falar mal dos impostos, como é o caso do “impostômetro”, artifício criado pela Associação Comercial de São Paulo e fortemente apoiado pelos meios de comunicação de massa. O que desejamos é mais Estado e não menos impostos. Somos contra a roubalheira, mas não contra o poder público. O contrário de forte poder público é o poder privado. Essas ideias mostram-se turvas para as pessoas, em geral. Em contraposição à ideia do impostômetro foi criado o sonegômetro. Enquanto que o pessoal da direita, como a Revista Veja, se esforça para maldizer o Bolsa Família, a sonegação parece não importar tanto. Espantam-se com os 21 bilhões de reais usados com esse programa em 2012, e afirmam que o Bolsa Família não funciona, e que o programa é usado como vitrine do governo (VEJA, 2013). Porém um estudo mostra que “em menos de 100 dias, o país deixou de arrecadar mais de R$ 106 bilhões” em impostos (R7, 2014). Ou seja, um ano de sonegação daria para pagar dezoito anos de Bolsa Família! E lembremos que para famílias numerosas, com mais de cinco crianças, o benefício não chega a trezentos reais por mês! Infelizmente essas lógicas de poder têm estruturado a política e a economia. As grandes empresas nacionais e transnacionais têm mais domínio nos países do que os governos. Esse fenômeno não acontece só no Brasil. E não são só estrangeiros que nos roubam e nos reprimem, há também brasileiros com grande capital que fazem parte desse jogo. Além de incriminar tais grupos de poder, devemos também criar condições para ter lógicas de participação pública que superem tais estruturas, como a lei 8243/2014 - que instituiu a Política Nacional de Participação Social. E nesse ponto entendo que é preciso ter mais unidade da classe trabalhadora, com sindicatos, associações e conselhos, bem como mais educação e informação. Escola e meios de comunicação de massa precisam ser ocupados pelas esquerdas para trabalharem em outras lógicas que não essa, do capitalismo.


Considerando o falseamento da democracia, a corrupção e a sonegação podemos entender que esse poder todo não é legítimo. As grandes corporações são mantidas pela roubalheira que se dá pelo financiamento de campanhas, favorecimentos de governos e legislativos, corrupção e sonegação. Alguns dizem – não poderíamos afirmar que todos os ricos são ladrões. O que precisamos cultivar é uma relação melhor entre trabalho e direitos, e menos diferenças econômicas.


[11] Mais que revolução política: educação!
O olhar ao longo da história pode nos dar a certeza de quem está por trás dessa articulação. Quando um governante fica mal visto, cai em desprestígio, sai da política e do governo, isso não abala a turma que está por trás dos financiamentos de campanha, do desvio de dinheiro público para interesses privados. Para lembrar só um exemplo, no dia 11/07/2012 foi cassado o mandato de Senador de Demóstenes Torres. Um ano antes ele fazia discursos criticando a corrupção no setor público, e foi até lançado informalmente como candidato à presidência da república pelo partido DEM2. Na sequência da história vemos outras pessoas que eram desconhecidas serem levadas aos cargos de poder, como Antonio Anastasia que tornou-se governador de Minas Gerais sem antes ter sido eleito para outro cargo político menor, semelhante ao que aconteceu com Dilma Roussef. Ao mesmo tempo o empresariado que está por trás das eleições, pouco se altera. Os grandes capitalistas são pouco conhecidos, não perdem seu poder (que é o capital) e que é maior do que o poder dos mandatos. Em certa medida os grandes capitalistas têm poder até sobre o judiciário como vemos no caso do jornalista Lúcio Flávio que foi condenado em 2005 a pagar oito mil reais por ter chamado de “pirata fundiário” a Cecílio do Rego Almeida. Acontece que em 2011 a Justiça Federal cancelou o registro de terras de Almeida, mostrando que as acusações do jornalista procediam3. As terras eram públicas (do Estado do Pará, da União e territórios indígenas) numa área maior que países como Dinamarca e estados como o Rio de Janeiro. O controle das campanhas políticas está com os grandes empresários. Controlam os governos, as leis, programas e financiamentos, se beneficiam da corrupção, sonegam impostos. Historicamente tudo muda, menos esse poder supra-governamental. A transitoriedade pode ser comprovada quando vemos que, num momento, novos partidos políticos são criados, em outro são desprestigiados e deixam de existir, outros são criados e ocupam seus lugares na política, as pessoas eleitas ou designadas para importantes cargos também mudam ano a ano, mas o controle e poder das grandes corporações permanece. Fala-se mal da política, dos políticos, mas não dos que estão por trás dessa armação e roubalheira. Os grandes capitalistas não são culpabilizados. Os movimentos sociais defendem que seja feita uma revolução e que as instituições de poder sejam controladas. Mas, tendo em vista aqueles dois aspectos – que os ricos oprimem os pobres; e que a cultura capitalista oprime a todos (pelo individualismo, produtivismo, competitividade, padronização e modernidade), se pensarmos numa revolução (um jeito qualquer de mudar o mundo!), não adiantaria somente que as grandes corporações transnacionais deixassem de ser de propriedade de uns poucos, e fossem do povo. Não bastaria somente tirar o capital das mãos dos mais ricos. A cultura capitalista, continuaria existindo e com ela a opressão. A opressão de uns sobre os outros, pela sede de lucro, pela competitividade... E também a opressão de cada um sobre si mesmo, se obrigando a produtividades crescentes, e vivendo em ambientes individualistas e sem graça (nos dois sentidos – sem atratividade e sem relações de gratuidade). Para pensar a revolução, entendo que devemos trabalhar nas duas frentes. A primeira é a luta para que os meios de produção sejam do Estado e assim do povo e não de certas pessoas. A segunda, é a luta para transformar a cultura de capitalista para comunitária, e mudar as pessoas em seu jeito de olhar para a vida. É preciso entender e cultivar hábitos de convivência opostos aos de individualismo, competitividade, produtivismo, padronização e modernidade.
Paulo Freire fala que as pessoas em sociedade podem colocar-se em processo de humanização. Para ele, nos anos anteriores ao golpe de 1964, a sociedade brasileira viveu uma época de transição. Na época anterior a esse período, os brasileiros, e a sociedade brasileira, comportavam-se como colônia e colonizados, a sociedade era, de modo geral, “intransitivada” em sua consciência, estaria fechada ao pensamento crítico, transitando mais no biologicamente vital, sem teor de vida no plano histórico-social.
É evidente que o conceito de “intransitividade” não corresponde a um fechamento do homem dentro dele mesmo, esmagado, se assim o fosse, por um tempo e um espaço todo-poderosos. O homem, qualquer que seja o seu estado, é um ser aberto. O que pretendemos significar com a consciência “instransitiva” é a limitação de sua esfera de apreensão. É a sua impermeabilidade a desafios situados fora da órbita vegetativa. Neste sentido e só neste sentido, é que a intransitividade representa um quase incompromisso do homem com a existência. (FREIRE, 1967, p. 34)
Naqueles anos a sociedade teria conseguido entrar num estado de transitoriedade para uma sociedade diferente. Esse primeiro estágio de mudança chamou de “transitividade ingênua”, que acreditava fosse a realidade daqueles dias [1962-1964] nos centros urbanos, que, “mais enfática ali, menos aqui, se caracteriza, entre outros aspectos, pela simplicidade na interpretação dos problemas” (ibid p. 59). A partir daquele ponto, a sociedade brasileira poderia avançar para a transitividade crítica, por meio de uma “uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política” que se caracterizaria “pela profundidade na interpretação dos problemas” (FREIRE, 1967, p. 60). Mas, infelizmente as forças conservadoras derrubaram o governo, que fora democraticamente eleito, e impuseram à força uma ditadura que durou vinte anos. Até o final da ditadura, pode ser questionado. Para Saviani a transição foi só mais uma transação:
O que chamam de transição “democrática” (1980) não teve nada de autenticamente democrático. Foi uma transação entre as elites, contra os dominados. Sarney vincula-se a Tancredo visando assegurar a manutenção da ordem econômica. “A transição somente poderia ser feita por ruptura, dentro da luta por uma forma de democracia que assegurasse à massa popular dos mais ou menos espoliados e excluídos e aos trabalhadores como classe o direito à revolução, dentro da ordem e contra a ordem.” citando Florestan Fernandes. (SAVIANI, 2012)

Para Florestan Fernandes não se pode bobear e pensar que os que estão com o poder permitirão que sejam implantadas mudanças sociais que favoreçam a igualdade, sem reagir. Para ele:
Não foi um erro confiar na democracia e lutar pela revolução nacional. O erro foi outro - o de supor que se poderiam atingir esses fins percorrendo a estrada real dos privilégios na companhia dos privilegiados. Não há reforma que concilie uma minoria prepotente a uma maioria desvalida. [...] A causa principal consiste em ficar rente à maioria e às suas necessidades econômicas, culturais e políticas: pôr o Povo no centro da história, como mola mestra da Nação. O que devemos fazer não é lutar pelo Povo. As nossas tarefas são de outro calibre: devemos colocar-nos a serviço do Povo brasileiro para que ele adquira, com maior rapidez e profundidade possíveis a consciência de si próprio e possa desencadear, por sua conta, a revolução nacional que instaure no Brasil uma nova ordem social democrática e um estado fundado na dominação efetiva da maioria. (Fernandes, 1977, p. 245-246, apud FRIGOTTO, 2011)


Nas análises de Caio Prado Junior a grande exploração do trabalhador, estabelecida no tempo do Brasil colônia teria se mantido até nossos dias. “Com a substituição do trabalho escravo pelo assalariado a grande exploração teria passado a assumir características capitalistas” (RICUPERO, 2012, p.31). Ele avalia que a industrialização não mudou “o mais significativo da vida brasileira, que continuaria a ser modelada pelo sentido de colonização” (ibid, p.32). No Brasil, apesar de termos declarado a independência política, “manteve-se a estrutura econômica e social da colônia” (ibid, p.31) que tem por base a produção de bens de alto valor para o mercado externo em grandes unidades produtivas, sendo a escravidão seu traço mais marcante e por isso “o trabalho servil seria onipresente, ou seja, estaria em todos os lugares, influenciando praticamente todos os aspectos da vida social” (ibid, p.29). Florestan Fernandes também fala de como no Brasil desenvolveu-se um capitalismo dependente que permite e requer uma combinação do moderno com o arcaico, “uma descolonização mínima, com uma modernização máxima” (FERNANDES, 1975, p.176). Por isso entendemos que a escola pública brasileira, mais que preocupada com competências, deveria ser como afirma Freire: radicalmente dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política.
Com tais reflexões justifico a importância de termos, cada vez mais, cursos abertos de educação política, como foi o 1o.CRB do Sul de MG. Devemos colaborar para que mais pessoas se questionem: o comunismo e o socialismo seriam mesmo opções ruins como falam?
Referências
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1Vejo muito disso no dia a dia do meu trabalho no CRAS... As pessoas não sabem nem de seus direitos, quando o sabem, sempre é no sentido de correr atrás dos benefícios individuais. “O coletivo não é problema meu...” Quando falo que milito em determinado movimento, ouço várias vezes a frase: “ainda bem que tem vocês...” e mais uma vez essa pessoa se desresponsabiliza do coletivo. Acho que falta a noção de que fazendo isso, ela abre mão de si mesma, porque sem a força do coletivo, cada indivíduo está totalmente perdido! (Nota de Sarah Helena de Souza Silva, colega do CRB, que atua na Economia Solidária em Poços de Caldas, MG)
2VALOR Econômico. DEM lança Demóstenes Torres a presidente em 2014. 06/12/2011. Disponível em Acesso em <http://www.valor.com.br/politica/1125712/dem-lanca-demostenes-torres-presidente-em-2014>. Acesso em 2012/07/06
3Jornal Brasil de Fato. A tendenciosa justiça do Pará. p. 9 Edição de 22 a 28 de março de 2012.