sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

 

ENTENDENDO O ATAQUE ÀS LEIS TRABALHISTAS


Celso Vallin, 21/06/2017


Dizem que "quem trabalha não tem tempo para ganhar dinheiro". Existe uma lógica geral que estrutura a sociedade que valoriza mais as pessoas que conseguem fazer negócios do que as que trabalham. E os negócios envolvem o trabalho de pessoas. Quando uma empresa contrata empregados está comprando o trabalho da pessoa. Grandes fortunas não vieram do trabalho, mas de boas negociações e de esquemas que se aproveitaram de oportunidades, nem sempre dignas, nem sempre completamente dentro das leis. O capitalismo é o mundo dos negócios! Os negócios maiores apoiam-se nos menores, e esses sempre apoiam-se no trabalho das pessoas. Não há como sustentar um negócio, ou empresa, que não seja apoiando-se no trabalho das pessoas, que dedicam diretamente seu esforço corporal, seu conhecimento, e habilidades manuais e intelectuais.

A CLT é de 1943, e foi resultado de lutas da classe trabalhadora, apesar de Getúlio Vargas representar um governo burguês. As leis trabalhistas asseguram direitos à classe trabalhadora e limitam o poder de quem contrata o trabalho de pessoas, e faz negócios com o produto do trabalho.

Sabemos que, cada vez mais, temos pessoas que trabalham sem carteira assinada. Algumas trabalham na informalidade, sem direitos. Outras trabalham por contrato e negociam algumas condições, mas não têm os plenos direitos da lei trabalhista. Por ai se percebe que a lei atual não consegue assegurar todas as relações de trabalho. Protege algumas.

Em 2017, quando essa reflexão foi escrita, o governo e congresso tentavam aprovar projetos para alterar as leis trabalhistas e da previdência. No livro "Adeus ao Trabalho?", em 1995, Ricardo Antunes estudou o tema e agora volta ao tema dizendo que a sociedade estava:


penetrando numa era de precarização estrutural do trabalho em escala global. O que naquele momento era uma relativa exceção - o trabalho precário, informal, terceirizado - tenderia a se tornar a regra. E a regra - o trabalho contratado, regulado, com direitos - tenderia cada vez mais a se tornar a exceção. A tragédia é que esse quadro se consolidou (ANTUNES, 2017)’


Esse movimento de precarização das condições do trabalho não é algo que dependa só da lei, nem algo que acontece só no Brasil. Vem acontecendo na China, Ìndia, EUA e tantos países ao longo das últimas décadas. A mudança das leis brasileiras é parte desse movimento internacional, desse jeito de pensar, dessas intenções que, em geral, derivam de interesses de empresários e desfavorecem a classe trabalhadora.

Quem está olhando do ponto de vista do negócio, espera poder contratar pessoas que trabalhem somente nos momentos e situações em que precisa, e que tenha certeza de que ganhará bem, contratando trabalho e vendendo seu produto.

Por outro lado, quem trabalha quer estabilidade e condições subjetivas e objetivas para poder trabalhar em paz. Assim, se a sociedade quiser favorecer o trabalho, e as pessoas que vivem do trabalho, precisa assegurar condições que permitam que a pessoa tenha uma vida digna, tanto por receber por seu trabalho o suficiente para sustentar a vida sua e de seus dependentes, como porque não estará arriscando-se a acidentes, a adoecer-se pelo trabalho, nem perder sua dignidade. Outro dia eu estava num supermercado e ouvi duas funcionárias conversando. A moça do caixa pediu à encarregada se poderia ir ao banheiro. A resposta foi não, porque já havia outra funcionária lá. Isso nos dá uma ideia de condições que podem tirar a dignidade de alguém. Antunes fala de uma escravidão do século XXI. Vejamos:


É evidente que não estamos voltando ao trabalho escravo de 1500, estamos falando de uma escravidão inclusive digital, do trabalho terceirizado, precarizado, informal, do trabalho sem direitos, de uma dependência do sistema perverso de metas, que tem levado a suicídios e adoecimentos do trabalho. Nós estamos em 2017, comemorando 100 anos da Greve Geral de 1917, e se esse processo não for obstado vamos regredir à condição vigente de trabalho antes de 1917. (ANTUNES, 2017)


Mesmo numa universidade pública, há pessoas contratadas por terceirização. Essas, são vistas por muitas, e por elas mesmas, como se fossem inferiores, e que por isso deveriam trabalhar caladas.

Se diz, na grande mídia, que a reforma trabalhista irá permitir que as férias da pessoa sejam divididas em até três vezes, que poderá ser negociada a ampliação da jornada de trabalho para 12h diárias, e ainda que, no lugar de pagar horas-extra, haverá um banco de compensação de horas. Dizem que todas essas medidas seriam negociadas com quem trabalha.

Então, qual seria o problema?

Acontece que existe um desequilíbrio de forças entre o empresariado e a pessoa contratada. Quem trabalha em empresa sabe que se não concordar com as condições impostas, a pessoa será demitida. Na maior parte dos casos as pessoas concordam com as condições impostas pela empresa, se submetem, por recearem a demissão, por saberem que se "criarem caso" serão as primeiras a serem demitidas logo que isso for conveniente para a empresa. É comum que exista uma alta taxa de turn over: em um momento promovem demissões e em outro fazem novas contratações. Isso colabora para a fragilidade de quem está num posto de trabalho. E sabemso que empresas não querem trabalhadores/as que as questionem. Quando isso aconttece, logo dão um jeito de dispensarem tais pessoas. Por isso é importante o sindicato. A CLT protege quem trabalha para o Sindicato. Essas pessoas protegidas por lei podem então atuar na negociação com o patronato, pelos direitos de todos/as. Por isso a proposta de reforma quer extinguir a obrigatoriedade da contribuição ao sindicato. Com isso irão enfraquecer os sindicatos e fortalecer o empresariado. Essas são medidas que enfraquecem quem trabalha e fortalecem a burguesia, que vive de negócios a partir do trabalho de outras pessoas. Antunes diz:


É claro que esse cenário todo, que é profundamente ideológico, é muito poderoso. Na empresa, você tem um trabalhador contra o outro, um não pode conversar com o outro e as resistências e ações sindicais são combatidas. O salário é individualizado. Só ganha quando produz e quem produz mais ganha mais. E quem produz menos, perde o lugar. É o reino da competição selvagem. Isso macula a classe trabalhadora. (ANTUNES, 2017)


Precisamos ter condições para valorizar e fortalecer o trabalho e não o negócio, ou o oportunismo. Isso envolve a consciência de classe. Para termos força nas lutas que procuram valorizar quem trabalha, e para dar boas condições de vida e de trabalho a quem se dedica ao trabalho, é preciso enfraquecer os dispositivos que estimulam a concorrência entre pares. Precisamos que pessoas de diferentes situações e empresas, de diferentes tipos de contratação se vejam como pares, que se unam, que percebam que são exploradas de formas diferentes, e que lutem para que a sociedade dê mais valor ao trabalho, e menos ao oportunismo e às jogadas que, tantas vezes, invadem as ilegalidades, usam acordos secretos e inconfessáveis para se dar bem. Finalizamos com Antunes:


O trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade. O trabalho que estrutura a humanidade - porque o trabalho é uma atividade vital - é imcompa-tível com o trabalho que o capital quer nos impor. É o enigma do século XXI. Por isso é que é ficção a ideia de fim do trabalho. Como é um horror uma sociedade em que só se trabalha. O trabalho deve ser fundado em ser uma atividade vital, que produza coisas úteis, de acordo com o tempo socialmente disponível. E isso é um imperativo categórico para a sociedade do século XXI. (ANTUNES, 2017)


ANTUNES, Ricardo. Na escravidão o trabalhador era vendido. Na terceirização, é alugado... 17 maio 2017 Revista Carta Capital. Na internet https://www.cartacapital.com.br/sociedade/201cna-escravidao-o-trabalhador-era-vendido-na-terceirizacao-ele-e-alugado201d/.

 

Li e assisti à entrevista de Chomsky que é muito interessante e importante.

Noam Chomsky entrevistado pela RTP. 14 Maio 2015. 27min.
Disponível em vídeo em https://www.rtp.pt/noticias/mundo/noam-chomsky-entrevistado-pela-rtp_v828624

Ele questiona sobre comunidade. O que é uma comunidade? O que precisaria acontecer para considerarmos uma vida em comunidade? Talvez seja cada dia mais difícil encontrarmos ou vivermos uma comunidade.

Cada pessoa vive em contato com SUA rede social de uma forma individualista. Não se trata de um grupo, mas muitas malhas que se sobrepõe. Não estamos de alguma forma reunidos. O que nos reune e orienta nosso comportamento é a institucionalidade geral da sociedade. Nesse caso existem os governos, municipal, estadual, federal, o poder legislativo, o judiciário, e mais algumas instituições que são fora dessas estruturas, como os conselhos, os movimentos sociais , ongs, partidos... E existem os meios de comunicação em massa que interferem no geral. Por outro lado a participação da população, em geral, na política e nas decisões que a afetam é pequena, quase nula ( 8 min).

Na América do Sul tem havido esforços de descolonização mas são anulados. A cooperação entre países é importante.

O programa neoliberal não é bem liberal, mas é forçado. E os mais ricos (uma minoria de 2%), forçam os mais pobres (a grande maioria). Existem ilegalidades, imoralidades, guerras, ações terroristas secretas e coisas assim que são usadas para assegurar e manter o poder dessa minoria.

Em quase toda parte (17min) as populações são atingidas. Quando começou o neoliberalismo (após os anos 1970), qual era o contexto mundial? Havia jovens desiludidos com o "progresso" que destrói a natureza e desrespeita as pessoas. Hippies na França, Inglaterra, EUA fazem protestos.

O poder econômico(21min) controla o sistema político: votos, congressistas...

Final: fala do Estado Islâmico e sobre o "terrorismo".

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

DEPENDÊNCIA OU SOBERANIA SOCIAL

Jan 2021 - Celso Vallin


Quero analisar como uma região territorial pode se tornar dependente, ou ganhar autonomia. São dois processos sobre os quais vamos refletir. Muitas vezes vemos uma região em que as pessoas são pobres e têm muita dificuldade para cuidar da vida. Ficamos pensando sobre: o que poderia mudar aquela situação? De outro lado, temos também regiões muito ricas, com tudo muito bonito, onde a vida é fácil. O que poderia colaborar para transformar uma situação de pobreza? Será possível e viável?

Para refletir, começo pela descrição de uma situação real que conheço. Uma amiga tinha uma terra que foi, há muitos anos, uma fazenda produtiva, de seu avô, bisavô, e depois de seu pai. Mas ela morava na cidade grande e a terra estava lá, abandonada, fazia tempo. Embora tivesse boas lembranças, e saudades, da vida de criança na fazenda, não se sentia em condições para recuperá-la. A fazendo estava parada. Tinha até vontade de fazê-la voltar a funcionar, e sonhava em viver nela, no lugar de viver na cidade, mas não se sentia capaz. Mesmo assim, vivia a dúvida, e considerava que na fazenda poderia, talvez, ter uma vida melhor do que estava tendo na cidade. Até que um dia apareceu uma proposta de uma empresa para plantar eucalipto naquelas terras. E mesmo morando longe, a proposta se tornou viável. Bastou assinar um contrato, para que fizessem tudo o que fosse necessário. Dessa forma ficou muito fácil. A empresa plantou mudas compradas aos milhares, mas antes preparou a terra. Durante o crescimento das árvores, algo perto de seis anos, a empresa cuidou de tudo. Em certa época foi feito um controle para as formigas não atacarem, em outra época cortaram certos galhos, para o crescimento ser do modo esperado, fizeram adubação química... E quando os pés de eucalipto já estavam grandes, a própria empresa deu um jeito de serem cortados, a madeira foi preparada para ser transportada por caminhões, que vieram e levaram para venda. Então, não foi necessário fazer nada. Só foi preciso declarar parceria, por meio do contrato, com aquela empresa. A pessoa entra com a propriedade da terra e a empresa colabora com todo esse trabalho. Mas não se pode dizer que essa empresa faça os trabalhos, porque tudo é subcontratado. São várias outras empresas menores que são contratadas para cada fase do empreendimento, e existe um custo para cada serviço prestado. As empresas contratadas para os serviços nem são do local, mas se deslocam de outros municípios, algumas vezes vêm de longe, para realizar tais trabalhos. Um banco financia tudo, tendo como garantia a propriedade da terra. A pessoa não precisa ter dinheiro nenhum. Quando chega no final, e a madeira é vendida conforme o preço de mercado, as contas são acertadas. De tudo o que for recebido, descontam-se as despesas que houve durante a produção, e mais uma taxa de lucro para a empresa que cuidou do negócio, e o restante fica para a dona da terra. Esse esquema de produção parece muito interessante. Mas quero comentar que isso pode fazer parte de uma situação que vai seduzir pessoas que vivem numa região, e, embora pareça ser uma facilidade e uma vantagem, ao longo do tempo, esse esquema acaba gerando dependência. Quero refletir ainda sobre o problema de se gerar dependência. Nesse caso que tomei para exemplo, minha amiga, já não morava mais na terra há anos, por outros motivos. Aquela pessoa já tinha ido embora para a cidade grande, buscar outros meios de vida. Mas muitas pessoas acabam entrando nesse mesmo esquema, como uma alternativa a outros modos de produção e subsistência, porque não estão conseguindo bons rendimentos de outra forma, ou porque não precisar trabalhar, é mais fácil, mais seguro... E qual seria o problema? Inicialmente parece uma boa opção. Mas vamos problematizar, mostrando que isso não é bom para a região, que passa a perder autonomia e soberania.

Eduardo Galeano, em Veias Abertas da América Latina, mostra como os europeus, espanhóis e outros, vieram aqui para a América do Sul, e para a América Latina, México, Caribe... E, com o passar do tempo, todo o sistema de vida dos indígenas, que eram os maia, os astecas, e os incas, além dos indígenas brasileiros, acabaram perdendo sua capacidade de organização, trabalho autônomo e sustentação da vida. Galeano fala que o modo de agir dos colonizadores mudou toda a vida do povo que, inicialmente era bem organizado e que tinha uma boa produção, com milhões de habitantes, sabedoria, e muitas realizações. A situação os transformou em pobres e incapazes. As regiões também se tornaram pobres. As regiões de mineração de ouro, prata e mercúrio, tiveram períodos de grande riqueza, que até hoje chamam atenção pela grandiosidade, pela história, e pelo que ficou em igrejas, monumentos, objetos de arte... Tudo muito maravilhoso, mas na época havia uma desigualdade grande, e depois, toda essa riqueza acabou se transformando em pobreza. E as cidades diminuíram e vivem hoje com monumentos fechados, abandonados, pouca produção, e cheios de problemas para conseguir se sustentar e viver. Olhando para essa história, percebemos que o que determina uma boa vida, um bem estar social, não é a riqueza natural, nem a tecnologia, o conhecimento e o progresso. Vemos que antes daquele período, os indígena não conheciam a roda, nem usavam cavalo, não conheciam o ferro, nem a pólvora, mas tinham plantações com irrigação artificial, que criaram, tinham grandes plantações de milho, mandioca, feijão, amendoim, batata-doce, além da organização social. E por serem povos muito numerosos, e pelas obras que deixaram, podemos saber que tinham sucesso. Depois, apesar dos europeus trazerem consigo novos conhecimentos, novas tecnologias, o que acabou resultando naquelas regiões foram cidades com menos gente, e abandonadas. Aquilo foi um projeto de desmanche. No trecho que mostramos a seguir, podemos ver detalhes da riqueza, e de como os indígenas, habitantes originais, eram mal tratados.

O padre Marmolejo descrevia mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada pelas pontes, com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia, e os templos deslumbrantes, o teatro, a praça de touros, a arena de galos e as torres e as cúpulas alçadas contra as verdes encostas das montanhas. Mas este era "o país das desigualdades", e Humboldt pôde escrever sobre o México "Em lugar algum a desigualdade é tão espantosa (...) a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulheres, o ar da sociedade: tudo anuncia um esmero extremado que se contrapõe à nudez, à ignorância e à rusticidade do populacho". Os socavões [da mineração] engoliam homens e mulas nas encostas das cordilheiras; os índios, "que viviam apenas para sobreviver ao dia", padeciam de fome endêmica, e as pestes os matavam como moscas. Num só ano, 1784, uma onda de enfermidades provocadas pela falta de alimentos, resultante de uma geada arrasadora, ceifou mais de oito mil vidas em Guanajuato. (GALEANO, 2020, p. 62)

Essa descrição de Galeano, de um processo de desmanche que durou mais de século, e que é muito amplo, atingindo países inteiros, causou males que duram até hoje. A empresa de eucaliptos, e os europeus com sua mineração de ouro, prata e mercúrio, em diferentes medidas e escalas, ambos causam a dependência e até o desmanche de uma estrutura social e econômica de soberania. Mas pode acontecer o inverso também. Um bom exemplo foi mostrado numa reportagem do Globo Rural em 03/01/2021. Mostram pessoas no Vale do Jequitinhonha, nos municípios de Francisco Badaró e Jenipapo de Minas Gerais, que têm uma vida muito pobre, mas que por meio de projetos sociais e parceria, com universidade e ONGs, estão conseguindo uma boa renda, em função de seus bordados, tecelagens, poesias e cultura local. Ali se percebe um projeto de desenvolvimento social. A reportagem é toda bonita, poética, musical, com imagens e roteiro muito bem construídos. Importante perceber que a TV produziu um vídeo muito bonito, mas a realidade retratada foi construída e sustentada por projetos sociais. Um deles é da UFMG, chamado Projetos do Polo Jequitinhonha (https://www.ufmg.br/polojequitinhonha/projetos-do-polo-jequitinhonha/). Também fundaram uma ONG, chamada Ajenai, que foi fundada em 1999. Em suas páginas podemos ver que o processo não é tão imediato. A TV construiu a imagem, o roteiro, e conta a história de uma forma muito bonita e até mágica, romântica. Sugiro que antes de terminar a leitura, você faça acesso ao endereço internet que está no final, para ver. A reportagem nos permite perceber duas comunidades que se desenvolvem. É o contrário do que aconteceu com os povoados indígenas, e do que acontece nas regiões tomadas pelo eucalipto. Certamente projetos sociais podem influenciar toda uma comunidade pobre e insustentável, com vida difícil, tornando o território, um lugar de mais vida, mais beleza, e melhor economia e bens de vida. Poderíamos citar outros projetos sociais que deram certo.

Finalmente, podemos questionar: que relações existem entre a história do eucalipto, dos indigenas contada pelo Galeano, e essa comunidade rural que é mostrada na reportagem da TV? O que pode-se observar é que do mesmo modo que um projeto muito bem pensado e apoiado por agentes externos, e articulado com agentes locais, um projeto assim pode criar fartura onde havia pobreza, como na situação do Jequitinhonha mostrada pela TV. Da mesma forma existem projetos de exploração predatória, como o que aconteceu quando os europeus vieram para as Américas, ou o que a empresa de eucalipto desenvolve, que são empreendimentos e organizações internacionais que geram dependência. Isso porque essa empresa tira sua vantagem em cima de um grupo que abrange vários municípios, vários territórios de um país. Não gera soberania. Acaba caçando a soberania desses povos.

Para finalizar podemos comparar esses projetos, que acabam com a soberania, com a situação de um passarinho que é tirado da natureza e colocado numa gaiola. Trata-se de uma analogia para ilustrar as ideias. Quando um passarinho é caçado na natureza e depois alimentado e tratado na gaiola, de início, o passarinho pode até gostar de não precisar mais ficar buscando comida por ai. Ele irá ganhar comida na boca todos os dias. Mas depois de um certo tempo, o animal se acostumará a viver na gaiola e ganhar a comida na boca. Se acontecer alguma mudança, que faça com que a pessoa não queira mais dar comida ao pássaro, mesmo que ele tenha liberdade para voar e estar na natureza, terá muita dificuldade para encontrar sua comida, podendo morrer antes que consiga reestruturar seu modo de vida. Ele terá perdido as estratégias e o dinamismo que tinha em sua vida para buscar o alimento. O mesmo, em comparação, pode acontecer com uma comunidade, ou pessoas, que cedam seus terrenos para o eucalipto, e o mesmo acontece para outros tipos de produção. São situações que geram dependência. Anteriormente, o território e as pessoas poderiam ter articuladas uma série de estratégias e uma diversidade de produções. Os sujeitos que ali estavam desenvolviam a economia e o sustento da vida com muitas atividades, que interagiam entre si. A comunidade tinha uma dinâmica. Quando vem uma empresa externa, que oferece uma coisa vantajosa e que vai gerando dependência, desarticula toda a soberania que a região tem. Em função disso, a região fica na mão da empresa, que gerou a dependência.

Existe um problema grave: o capitalismo se apoia sempre em esquemas como esse do eucalipto. Quase sempre, as grandes empresas, com controle internacional, embora se digam liberais, o objetivo maior delas é gerar uma situação de hegemonia no setor em que atuam. Querem e trabalham com todas as forças para ter um campo de domínio da cadeia produtiva inteira. A esse respeito tenho uma reflexão (VALLIN, 2019) que fala da cadeia produtiva do café, e como se dá a exploração econômica, apoiando-se em estudo de Dowbor (2014).

Como dizíamos, as corporações internacionais buscam estabelecer um campo de domínio no setor em que atuam. Esse domínio abrange a cadeia produtiva inteira. O domínio internacional sobre um setor de produção consegue controlar os preços, tanto do produto final, quanto das fases e serviços intermediários da produção. Esse controle é o que permite que os pagamentos aos participantes da cadeia produtiva sejam pequenos em relação ao grande lucro de quem está no controle. Ou seja: essas cadeias produtivas com dependência centralizada são uma forma de gerar e manter a desigualdade.

Por que geram tal desigualdade? Seria alguma perversidade, ou maldade do capitalismo? Não se trata disso, mas é a própria lógica do capitalismo, que faz parecer legítimo que todos lutem, e disputem, para se tornarem dominadores e com isso terem suas vantagens e seus benefícios. A lógica do capitalismo não é atingir a igualdade e a justiça social. A lógica é competir e ganhar. Por isso as grandes empresas internacionais, e seus investidores, que detém o domínio e lucro dessas empresas, se consideram vitoriosos, ou consideram que estão atingindo seus objetivos quando conseguem tirar um lucro máximo. Nessas circunstâncias é importante notar que existe muito mais pessoas envolvidas nos trabalhos do que na especulação, na propriedade e controle de empresas.

Dessa forma conseguem que o trabalho seja menos remunerado ou valorizado do que o negócio e a dominância. O trabalho é subalternizado. O negócio, ou seja, a esperteza, ou o controle e hegemonia, em dado setor de produção, irá gerando o sucesso. De novo ressaltamos que isso é o contrário da liberdade, reivindicada pelos que se dizem liberais. O domínio de poucos vai tirando a liberdade de uma parte muito grande de pessoas. Em última análise, essas pessoas que têm o controle, a propriedade, e a hegemonia em dado setor, constituem-se num grupo pequeno de pessoas que tem vantagens sobre os outros. Essas pessoas acabam tendo uma vida cheia de regalias, em função do ganham a partir da exploração do trabalho de outras pessoas, em geral. Esse é o problema que procuramos evitar e combater. Essa lógica é uma trama complicada e precisa ser compreendida. Da mesma forma é complicado agir, de modo a evitar, ou, ao menos, não fortalecer essas lógicas. É preciso criar resistência, perceber onde existem projetos que geram dependência, que tiram autonomia de um território, de um povo, para se contrapor, não aceitar, não colaborar inocentemente. E também ao contrário, é preciso perceber quais projetos fortalecem a comunidade, as pessoas que trabalham, e esses podem ser valorizados para que avancem.

Nessa perspectiva não existe nada contra o avanço do conhecimento e da tecnologia, desde que não sejam usados para gerar dependência. Muito ao contrário. A novidades tecnológicas podem ajudar a resolver problemas e melhorar a vida das pessoas. Nesse projeto citado, do Vale do Jequitinhonha, as pessoas passaram a usar tecnologia mais do que antes, o que está sendo bom para elas. E mesmo olhando para a produção de madeira, ou de café, e todas as situações de trabalho e produção, sempre é bom contar com o conhecimento e a tecnologia, tomando só o cuidado para perceber quando há situações valorizam o trabalho, ou que, ao contrário, tiram autonomia de um território, geram dependência, e tiram a soberania de um povo.



REFERÊNCIAS

GALEANO, Eduardo H. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre, RS. L&PM, 2020 (1a. Ed. em 1971).

GLOBO RURAL. Bordado, tecelagem e poesia: projetos resgatam tradições de comunidades rurais de MG. Globo Play. 24 min. Exibição em 3 jan 2021. Disponível em https://globoplay.globo.com/v/9148896/. Acesso em 4 jan 2021.

VALLIN, Celso. Sorria, ame e abrace. Reflexão postada no Blogue do Professor Celso. 2019. Disponível em http://celsovallin.blogspot.com/2019/. Acesso jan 2021.

DOWBOR, Ladislau. Produtores, Intermediários e Consumidores: o enfoque da cadeia de preços. Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, n. 3, p. 7-16, jul-set, 2014. Disponível em <https://ren.emnuvens.com.br/ren/article/view/115/94>. Acesso em 2019.10.19