DEPENDÊNCIA
OU SOBERANIA SOCIAL
Jan
2021 - Celso Vallin
Quero analisar como uma
região territorial pode se tornar dependente, ou ganhar autonomia.
São dois processos sobre os quais vamos refletir. Muitas vezes
vemos uma região em que as pessoas são pobres e têm muita
dificuldade para cuidar da vida. Ficamos pensando sobre: o que
poderia mudar aquela situação? De outro lado, temos também regiões
muito ricas, com tudo muito bonito, onde a vida é fácil. O que
poderia colaborar para transformar uma situação de pobreza? Será
possível e viável?
Para refletir, começo pela
descrição de uma situação real que conheço. Uma amiga tinha uma
terra que foi, há muitos anos, uma fazenda produtiva, de seu avô,
bisavô, e depois de seu pai. Mas ela morava na cidade grande e a
terra estava lá, abandonada, fazia tempo. Embora tivesse boas
lembranças, e saudades, da vida de criança na fazenda, não se
sentia em condições para recuperá-la. A fazendo estava parada.
Tinha até vontade de fazê-la voltar a funcionar, e sonhava em viver
nela, no lugar de viver na cidade, mas não se sentia capaz. Mesmo
assim, vivia a dúvida, e considerava que na fazenda poderia, talvez,
ter uma vida melhor do que estava tendo na cidade. Até que um dia
apareceu uma proposta de uma empresa para plantar eucalipto naquelas
terras. E mesmo morando longe, a proposta se tornou viável. Bastou
assinar um contrato, para que fizessem tudo o que fosse necessário.
Dessa forma ficou muito fácil. A empresa plantou mudas compradas aos
milhares, mas antes preparou a terra. Durante o crescimento das
árvores, algo perto de seis anos, a empresa cuidou de tudo. Em certa
época foi feito um controle para as formigas não atacarem, em outra
época cortaram certos galhos, para o crescimento ser do modo
esperado, fizeram adubação química... E quando os pés de
eucalipto já estavam grandes, a própria empresa deu um jeito de
serem cortados, a madeira foi preparada para ser transportada por
caminhões, que vieram e levaram para venda. Então, não foi
necessário fazer nada. Só foi preciso declarar parceria, por meio
do contrato, com aquela empresa. A pessoa entra com a propriedade da
terra e a empresa colabora com todo esse trabalho. Mas não se pode
dizer que essa empresa faça os trabalhos, porque tudo é
subcontratado. São várias outras empresas menores que são
contratadas para cada fase do empreendimento, e existe um custo para
cada serviço prestado. As empresas contratadas para os serviços nem
são do local, mas se deslocam de outros municípios, algumas vezes
vêm de longe, para realizar tais trabalhos. Um banco financia tudo,
tendo como garantia a propriedade da terra. A pessoa não precisa ter
dinheiro nenhum. Quando chega no final, e a madeira é vendida
conforme o preço de mercado, as contas são acertadas. De tudo o que
for recebido, descontam-se as despesas que houve durante a produção,
e mais uma taxa de lucro para a empresa que cuidou do negócio, e o
restante fica para a dona da terra. Esse esquema de produção parece
muito interessante. Mas quero comentar que isso pode fazer parte de
uma situação que vai seduzir pessoas que vivem numa região, e,
embora pareça ser uma facilidade e uma vantagem, ao longo do tempo,
esse esquema acaba gerando dependência. Quero refletir ainda sobre o
problema de se gerar dependência. Nesse caso que tomei para exemplo,
minha amiga, já não morava mais na terra há anos, por outros
motivos. Aquela pessoa já tinha ido embora para a cidade grande,
buscar outros meios de vida. Mas muitas pessoas acabam entrando nesse
mesmo esquema, como uma alternativa a outros modos de produção e
subsistência, porque não estão conseguindo bons rendimentos de
outra forma, ou porque não precisar trabalhar, é mais fácil, mais
seguro... E qual seria o problema? Inicialmente parece uma boa opção.
Mas vamos problematizar, mostrando que isso não é bom para a
região, que passa a perder autonomia e soberania.
Eduardo Galeano, em Veias
Abertas da América Latina, mostra como os europeus, espanhóis e
outros, vieram aqui para a América do Sul, e para a América Latina,
México, Caribe... E, com o passar do tempo, todo o sistema de vida
dos indígenas, que eram os maia, os astecas, e os incas, além dos
indígenas brasileiros, acabaram perdendo sua capacidade de
organização, trabalho autônomo e sustentação da vida. Galeano
fala que o modo de agir dos colonizadores mudou toda a vida do povo
que, inicialmente era bem organizado e que tinha uma boa produção,
com milhões de habitantes, sabedoria, e muitas realizações. A
situação os transformou em pobres e incapazes. As regiões também
se tornaram pobres. As regiões de mineração de ouro, prata e
mercúrio, tiveram períodos de grande riqueza, que até hoje chamam
atenção pela grandiosidade, pela história, e pelo que ficou em
igrejas, monumentos, objetos de arte... Tudo muito maravilhoso, mas
na época havia uma desigualdade grande, e depois, toda essa riqueza
acabou se transformando em pobreza. E as cidades diminuíram e vivem
hoje com monumentos fechados, abandonados, pouca produção, e cheios
de problemas para conseguir se sustentar e viver. Olhando para essa
história, percebemos que o que determina uma boa vida, um bem estar
social, não é a riqueza natural, nem a tecnologia, o conhecimento e
o progresso. Vemos que antes daquele período, os indígena não
conheciam a roda, nem usavam cavalo, não conheciam o ferro, nem a
pólvora, mas tinham plantações com irrigação artificial, que
criaram, tinham grandes plantações de milho, mandioca, feijão,
amendoim, batata-doce, além da organização social. E por serem
povos muito numerosos, e pelas obras que deixaram, podemos saber que
tinham sucesso. Depois, apesar dos europeus trazerem consigo novos
conhecimentos, novas tecnologias, o que acabou resultando naquelas
regiões foram cidades com menos gente, e abandonadas. Aquilo foi um
projeto de desmanche. No trecho que mostramos a seguir, podemos ver
detalhes da riqueza, e de como os indígenas, habitantes originais,
eram mal tratados.
O padre Marmolejo
descrevia mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada pelas
pontes, com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na
Babilônia, e os templos deslumbrantes, o teatro, a praça de touros,
a arena de galos e as torres e as cúpulas alçadas contra as verdes
encostas das montanhas. Mas este era "o
país das desigualdades",
e Humboldt pôde escrever sobre o México "Em
lugar algum a desigualdade é tão espantosa (...) a arquitetura dos
edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulheres, o
ar da sociedade: tudo anuncia um esmero extremado que se contrapõe à
nudez, à ignorância e à rusticidade do populacho".
Os socavões [da
mineração] engoliam
homens e mulas nas encostas das cordilheiras; os índios, "que
viviam apenas para sobreviver ao dia",
padeciam de fome endêmica, e as pestes os matavam como moscas. Num
só ano, 1784, uma onda de enfermidades provocadas pela falta de
alimentos, resultante de uma geada arrasadora, ceifou mais de oito
mil vidas em Guanajuato. (GALEANO,
2020, p. 62)
Essa descrição de Galeano,
de um processo de desmanche que durou mais de século, e que é muito
amplo, atingindo países inteiros, causou males que duram até hoje.
A empresa de eucaliptos, e os europeus com sua mineração de ouro,
prata e mercúrio, em diferentes medidas e escalas, ambos causam a
dependência e até o desmanche de uma estrutura social e econômica
de soberania. Mas pode acontecer o inverso também. Um bom exemplo
foi mostrado numa reportagem do Globo Rural em 03/01/2021. Mostram
pessoas no Vale do Jequitinhonha, nos municípios de Francisco Badaró
e Jenipapo de Minas Gerais, que têm uma vida muito pobre, mas que
por meio de projetos sociais e parceria, com universidade e ONGs,
estão conseguindo uma boa renda, em função de seus bordados,
tecelagens, poesias e cultura local. Ali se percebe um projeto de
desenvolvimento social. A reportagem é toda bonita, poética,
musical, com imagens e roteiro muito bem construídos. Importante
perceber que a TV produziu um vídeo muito bonito, mas a realidade
retratada foi construída e sustentada por projetos sociais. Um
deles é da UFMG, chamado Projetos do Polo Jequitinhonha
(https://www.ufmg.br/polojequitinhonha/projetos-do-polo-jequitinhonha/).
Também fundaram uma ONG, chamada Ajenai, que foi fundada em 1999. Em
suas páginas podemos ver que o processo não é tão imediato. A TV
construiu a imagem, o roteiro, e conta a história de uma forma muito
bonita e até mágica, romântica. Sugiro que antes de terminar a
leitura, você faça acesso ao endereço internet que está no final,
para ver. A reportagem nos permite perceber duas comunidades que se
desenvolvem. É o contrário do que aconteceu com os povoados
indígenas, e do que acontece nas regiões tomadas pelo eucalipto.
Certamente projetos sociais podem influenciar toda uma comunidade
pobre e insustentável, com vida difícil, tornando o território, um
lugar de mais vida, mais beleza, e melhor economia e bens de vida.
Poderíamos citar outros projetos sociais que deram certo.
Finalmente, podemos
questionar: que relações existem entre a história do eucalipto,
dos indigenas contada pelo Galeano, e essa comunidade rural que é
mostrada na reportagem da TV? O que pode-se observar é que do mesmo
modo que um projeto muito bem pensado e apoiado por agentes externos,
e articulado com agentes locais, um projeto assim pode criar fartura
onde havia pobreza, como na situação do Jequitinhonha mostrada pela
TV. Da mesma forma existem projetos de exploração predatória, como
o que aconteceu quando os europeus vieram para as Américas, ou o que
a empresa de eucalipto desenvolve, que são empreendimentos e
organizações internacionais que geram dependência. Isso porque
essa empresa tira sua vantagem em cima de um grupo que abrange vários
municípios, vários territórios de um país. Não gera soberania.
Acaba caçando a soberania desses povos.
Para finalizar podemos
comparar esses projetos, que acabam com a soberania, com a situação
de um passarinho que é tirado da natureza e colocado numa gaiola.
Trata-se de uma analogia para ilustrar as ideias. Quando um
passarinho é caçado na natureza e depois alimentado e tratado na
gaiola, de início, o passarinho pode até gostar de não precisar
mais ficar buscando comida por ai. Ele irá ganhar comida na boca
todos os dias. Mas depois de um certo tempo, o animal se acostumará
a viver na gaiola e ganhar a comida na boca. Se acontecer alguma
mudança, que faça com que a pessoa não queira mais dar comida ao
pássaro, mesmo que ele tenha liberdade para voar e estar na
natureza, terá muita dificuldade para encontrar sua comida, podendo
morrer antes que consiga reestruturar seu modo de vida. Ele terá
perdido as estratégias e o dinamismo que tinha em sua vida para
buscar o alimento. O mesmo, em comparação, pode acontecer com uma
comunidade, ou pessoas, que cedam seus terrenos para o eucalipto, e o
mesmo acontece para outros tipos de produção. São situações que
geram dependência. Anteriormente, o território e as pessoas
poderiam ter articuladas uma série de estratégias e uma diversidade
de produções. Os sujeitos que ali estavam desenvolviam a economia e
o sustento da vida com muitas atividades, que interagiam entre si. A
comunidade tinha uma dinâmica. Quando vem uma empresa externa, que
oferece uma coisa vantajosa e que vai gerando dependência,
desarticula toda a soberania que a região tem. Em função disso, a
região fica na mão da empresa, que gerou a dependência.
Existe um problema grave: o
capitalismo se apoia sempre em esquemas como esse do eucalipto. Quase
sempre, as grandes empresas, com controle internacional, embora se
digam liberais, o objetivo maior delas é gerar uma situação de
hegemonia no setor em que atuam. Querem e trabalham com todas as
forças para ter um campo de domínio da cadeia produtiva inteira. A
esse respeito tenho uma reflexão (VALLIN, 2019) que fala da cadeia
produtiva do café, e como se dá a exploração econômica,
apoiando-se em estudo de Dowbor (2014).
Como dizíamos, as
corporações internacionais buscam estabelecer um campo de domínio
no setor em que atuam. Esse domínio abrange a cadeia produtiva
inteira. O domínio internacional sobre um setor de produção
consegue controlar os preços, tanto do produto final, quanto das
fases e serviços intermediários da produção. Esse controle é o
que permite que os pagamentos aos participantes da cadeia produtiva
sejam pequenos em relação ao grande lucro de quem está no
controle. Ou seja: essas cadeias produtivas com dependência
centralizada são uma forma de gerar e manter a desigualdade.
Por que geram tal
desigualdade? Seria alguma perversidade, ou maldade do capitalismo?
Não se trata disso, mas é a própria lógica do capitalismo, que
faz parecer legítimo que todos lutem, e disputem, para se tornarem
dominadores e com isso terem suas vantagens e seus benefícios. A
lógica do capitalismo não é atingir a igualdade e a justiça
social. A lógica é competir e ganhar. Por isso as grandes empresas
internacionais, e seus investidores, que detém o domínio e lucro
dessas empresas, se consideram vitoriosos, ou consideram que estão
atingindo seus objetivos quando conseguem tirar um lucro máximo.
Nessas circunstâncias é importante notar que existe muito mais
pessoas envolvidas nos trabalhos do que na especulação, na
propriedade e controle de empresas.
Dessa forma conseguem que o
trabalho seja menos remunerado ou valorizado do que o negócio e a
dominância. O trabalho é subalternizado. O negócio, ou seja, a
esperteza, ou o controle e hegemonia, em dado setor de produção,
irá gerando o sucesso. De novo ressaltamos que isso é o contrário
da liberdade, reivindicada pelos que se dizem liberais. O domínio de
poucos vai tirando a liberdade de uma parte muito grande de pessoas.
Em última análise, essas pessoas que têm o controle, a
propriedade, e a hegemonia em dado setor, constituem-se num grupo
pequeno de pessoas que tem vantagens sobre os outros. Essas pessoas
acabam tendo uma vida cheia de regalias, em função do ganham a
partir da exploração do trabalho de outras pessoas, em geral. Esse
é o problema que procuramos evitar e combater. Essa lógica é uma
trama complicada e precisa ser compreendida. Da mesma forma é
complicado agir, de modo a evitar, ou, ao menos, não fortalecer
essas lógicas. É preciso criar resistência, perceber onde existem
projetos que geram dependência, que tiram autonomia de um
território, de um povo, para se contrapor, não aceitar, não
colaborar inocentemente. E também ao contrário, é preciso perceber
quais projetos fortalecem a comunidade, as pessoas que trabalham, e
esses podem ser valorizados para que avancem.
Nessa perspectiva não
existe nada contra o avanço do conhecimento e da tecnologia, desde
que não sejam usados para gerar dependência. Muito ao contrário. A
novidades tecnológicas podem ajudar a resolver problemas e melhorar
a vida das pessoas. Nesse projeto citado, do Vale do Jequitinhonha,
as pessoas passaram a usar tecnologia mais do que antes, o que está
sendo bom para elas. E mesmo olhando para a produção de madeira, ou
de café, e todas as situações de trabalho e produção, sempre é
bom contar com o conhecimento e a tecnologia, tomando só o cuidado
para perceber quando há situações valorizam o trabalho, ou que, ao
contrário, tiram autonomia de um território, geram dependência, e
tiram a soberania de um povo.
REFERÊNCIAS
GALEANO, Eduardo H. As veias
abertas da América Latina. Porto Alegre, RS. L&PM, 2020 (1a. Ed.
em 1971).
GLOBO RURAL. Bordado,
tecelagem e poesia: projetos resgatam tradições de comunidades
rurais de MG. Globo Play. 24 min. Exibição em 3 jan 2021.
Disponível em https://globoplay.globo.com/v/9148896/. Acesso em 4
jan 2021.
VALLIN, Celso. Sorria, ame e
abrace. Reflexão postada no Blogue do Professor Celso. 2019.
Disponível em http://celsovallin.blogspot.com/2019/. Acesso jan
2021.
DOWBOR, Ladislau.
Produtores, Intermediários e Consumidores: o enfoque da cadeia de
preços. Rev. Econ. NE, Fortaleza, v. 45, n. 3, p. 7-16, jul-set,
2014. Disponível em
<https://ren.emnuvens.com.br/ren/article/view/115/94>. Acesso
em 2019.10.19