(São 8 páginas - por isso é melhor imprimir e ler em papel!)
O
eterno problema da FALTA de tempo
Celso
Vallin, 2005
-Olá
como vai.
-Eu
vou indo correndo pegar meu lugar no futuro
-Me
perdoe a pressa.
-É
a alma dos nossos negócios.
-O
sinal...
-Eu
espero você.
-Vai
abrir...
Paulinho
da Viola fez música com a angústia da falta de tempo, entre dois
amigos que se encontravam num cruzamento de trânsito, enquanto
viviam aqueles segundos de espera do semáforo abrir.
Salvador
Dali pintou relógios que escorrem eternizando suas impressões sobre
o tempo.
Arroyo estuda a escola
brasileira e a vida do educador e conclui: “o
tempo aparece cada vez com maior destaque como uma categoria que
exige nossa atenção profissional”
(Arroyo, 2004, p.23).
Mesmo quem vive a
realidade do chamado ‘primeiro mundo’ aponta a falta de tempo
como um empecilho aos avanços da escola.
Este
é um tema de importância, a se levar em conta que, cada vez mais,
temos exemplos, a partir dos esforços de reforma de todo o mundo, de
que a falta de tempo é o maior impedimento à aprendizagem dos
docentes e à melhoria da escola.
(Hernández, 2004, p. 13)
Hoje é comum que as
pessoas sintam falta de tempo e pode-se discutir como organizar
melhor o uso do tempo. A idéia é que a pessoa organize melhor sua
vida, de maneira a “ganhar tempo”. Mas o que seria organizar
melhor o nosso tempo?
Num primeiro olhar
sobre o eterno problema da falta de tempo, nossos impulsos e nossa
racionalidade nos indicam que devemos aproveitar melhor os minutos,
fazer nossas atividades de forma mais rápida e objetiva, e talvez
aumentar o tempo dedicado às atividades “produtivas”. Não é
difícil encontrar manuais, dicas e até cursos que exploram essa
linha de pensamento, recomendando até o uso de planilha, no
computador ou no papel mesmo, de modo a racionalizar o uso do tempo.
Muitas vezes dedicamos muito tempo a questões que consideramos de
pouca importância, e acabamos sem tempo para questões essenciais.
Assim, cuidar da maneira como usamos nosso tempo pode nos trazer
alguns benefícios importantes.
Mas é preciso aprender
a cumprir os compromissos de tempo mas também se manter livre, sem
se afogar nas demandas de urgência do cotidiano. É preciso aprender
a ser dono de nosso próprio tempo.
Observações mais
filosóficas nos remetem a outros pensamentos.
[...]
o aprendiz é como um viajante que se detém o tempo que for
necessário nos lugares de seu interesse, que desfruta do encontro
inesperado e que se sente atraído mais pela intensidade da
experiência do que pela quantidade de postais que acumula.
(Hernández, 2004, p. 13)
Será
que o tempo existe mesmo? Não seria só uma criação cultural? Tudo
não passaria de uma questão de estabelecimento de prioridades e
significados?
Muitos esquemas de
pensamento, de trabalho, e de organização na escola são
emprestados do mundo dos negócios. Alguns deles vêm para ajudar,
mas outros podem distorcer as verdadeiras funções da escola.
Algumas pessoas agem de
forma semelhante à de um ‘patrão’, mesmo na escola. Em geral
são diretores, coordenadores, supervisores, dirigentes e até
‘professores diante de seus alunos’. Outros acabam ficando em
posição semelhante à de ‘empregados’. Também na escola são
vividas relações semelhantes às de patrão e empregado. Mas, como
na sociedade em geral, muitos estão como ‘patrão’ numa situação
e ao mesmo tempo como ‘empregado’ em outra. Algumas vezes a
pessoa que está no papel de patrão age de modo a “tirar o suco”
de outras pessoas com quem tem algum vínculo no trabalho, aqueles
que sente como “seus” empregados, ou seja, procura fazer com que
os outros rendam o máximo. Essa relação entre as pessoas, quando
se sentem na obrigação de se comportar como patrão e empregados,
essa assunção de papéis, gera um clima de pressão e de
incomodação. Tira a paz e alegria das pessoas. Elas acabam
sentindo-se exploradas, ou sempre em dívida com o sistema. Existe ai
também uma auto-imposição por metas de “produtividade”, e isso
acontece até na escola. Esse é um dos fatores que cria a sensação
de falta de tempo. Mesmo pessoas que estão em cargos de gestão
sentem-se cobradas e sofrem dessa “falta de tempo” real ou
psicológica. Sentem que deveriam fazer mais!
As
relações trabalhistas vêm sofrendo mudanças e temos cada vez mais
pessoas ‘contratadas para prestar serviços’ e não como
empregados (de carteira assinada). Esse é outro fator de pressão e
de instabilidade. Ajuda as instituições a aproveitarem o máximo
das pessoas, e colabora para que elas sintam-se em dívida, ou com
falta de tempo. Mais pessoas trabalham por contrato, e as relações
de trabalho são cada vez mais temporárias e instáveis. Por receio
de ficar sem trabalho, ou sem dinheiro, as pessoas acabam aceitando
mais responsabilidades do que gostariam, ou poderiam, e ficam
sobrecarregadas. Por outro lado, quando limitam adequadamente o
volume de trabalho contratado, correm o risco de ficar alguns
períodos sem trabalho ou com pouco trabalho, o que também gera
estresse.
As
pessoas estressadas costumam se renovar nas férias, mas quem presta
serviços por contratos (escritos ou verbais) não costuma contratar
períodos de férias. Mesmo quando estão sem contratos, ainda que
sejam por pequenos períodos (um ou dois meses), não se sentem em
paz para viver como se estivessem em férias. Ocupam o tempo e a
mente buscando novos contratos e vivem a insegurança financeira.
Por
serem mal remunerados, ou pelo receio de ficar com pouco trabalho
(aulas ou outros trabalhos) há, muitos profissionais de educação
que assumem mais responsabilidades do que gostariam (aulas,
atribuições de gestão, e outras), às vezes em mais de um
endereço, e acabam sem tempo para os necessários trabalhos de
planejamento, reflexão e estudo, nos planos pessoal e coletivo. Essa
situação, aliada às dificuldades naturais do magistério também
gera estresse.
Empregados
ou prestadores de serviços, ambos acabam na mesma situação.
Sentem-se sempre em dívida.
Quando
se trabalha a serviço de outros seres humanos, cercado por
expectativas difusas, culpa e frustração tornam-se parte do
serviço. Eis as palavras de um dos professores que participou do
estudo sobre o tempo de preparação: “Ensinar é uma profissão
que, quando você vai para casa, sempre leva material em que pensar.
Você pensa ‘deveria estar fazendo tal coisa’. Sinto-me culpado
por sentar-me durante meia hora.” Estas expectativas tão
absurdamente elevadas, muitas delas auto-impostas [...] reforçam o
individualismo. (Fullan
e Hargreaves, 2000, p. 61)
O
estresse não é sempre ruim. Um pouco de estresse, pode ajudar a
superar limitações pessoais, e até tirar as pessoas do marasmo e
desânimo das rotinas. Mas as pessoas precisam saber se cuidar e
estabelecer limites entre o estresse leve e produtivo, daquele que
destrói vidas: a do estressado e a de quem convive com ele. A escola
não é uma instituição que visa o lucro e a competitividade, e
nela o melhor a ser feito nem sempre é resultado de uma ponderação
de ordem simplesmente racional. Deve ser um ambiente com espaço e
compreensão para o erro e acerto, para diferentes ritmos,
investigações e experimentações – tudo isso vai contra algumas
idéias empresariais de racionalização do tempo. Nos ambientes de
aprendizagem deve haver paz nas relações de modo a permitir perdas,
ineficiências e reflexões pessoais e coletivas. Na escola pode-se
lidar com situações de algum estresse e cobrança, mas sempre de
olho no processo de aprendizagem de cada um e do coletivo.
Tanto
em relações de emprego, como em relações de prestação de
serviços, a competitividade favorece que uns desqualifiquem o
trabalho dos outros. Muitas vezes isso acontece de forma velada.
Esses comportamentos desfavorecem a articulação de trabalhos
cooperativos e a formação de equipes e de coletivos. Se essa falta
de companheirismo e solidariedade no trabalho já é ruim na empresa,
na escola é mais grave.
Tentar
resolver o problema da falta de tempo imitando soluções
empresariais pode estar reforçando os esquemas rígidos em que a
escola está tradicionalmente estruturada.
Enfrentar
o tempo escolar requer não esquecer que aqueles que pensaram o
‘dever ser’ da escola no início do século XX optaram pela carta
da racionalização, entendida como ‘a organização da vida por
meio da divisão e da coordenação das atividades fundamentada em um
estudo exato das relações dos homens entre si, com suas ferramentas
e seu ambiente, objetivando alcançar maior eficácia e
produtividade’.
(Hernández,
2004, p. 13)
Não
buscamos desenvolver a autonomia dos educandos? Desenvolvimento de
autonomia requer oportunidades de experimentação, com possibilidade
para acertos e erros. A otimização do tempo não estaria
contribuindo para um modo de agir dentro de critérios e padrões
rígidos demais para um ambiente de escola?
É
a lógica “transmissiva”, que organiza todos os tempos e os
espaços tanto do professor quanto do aluno, em torno dos “conteúdos”
a serem transmitidos. Uma suposta lógica dos conteúdos a serem
transmitidos constitui o eixo vertebrador da organização dos graus,
séries, disciplinas, grades, avaliações, recuperações,
aprovações ou reprovações. (Arroyo,
2004, p. 193)
Conseguimos
tempos de formação e planejamento, mas como libertá-los dos tempos
de aula, da rigidez curricular, dos rituais das provas...? Uma
professora destacou que as primeiras vítimas dessa máquina do tempo
ou dessa lógica temporal férrea são as professoras e os
professores. Os depoimentos foram mostrando como estamos tão
acostumados com essa lógica temporal instituída que nem a
questionamos e até a defendemos como se fizesse parte de nosso ritmo
temporal docente e humano. Não percebemos que muitos dos problemas
de nosso trabalho têm sua origem na lógica temporal a que está
submetida nossa docência. Se nossos tempos fossem organizados de
outra maneira não seríamos mais livres? (Arroyo,
2004, p. 195)
Escola
cidadã é aquela que contribui para que educandos e educadores
encontrem e desenvolvam seu potencial humano. O ambiente ajuda as
pessoas a serem mais gente. Ajuda a aprender a conviver consigo
mesmo, com o semelhante e com a natureza. A otimização dos tempos
não estaria acorrentando as pessoas aos processos já estabelecidos?
Não estaria dificultando o jeito humano de ser, criativo, crítico,
autoral?
Assim
é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma
espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a
educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo,
implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira
pretende manter a imersão;
a segunda, pelo contrário, busca a emersão
das consciências, de que resulte sua inserção
crítica
na realidade. (Freire,
1987, p. 70, grifos do autor)
Sendo
assim, o uso do tempo não deveria estar sendo discutido e
flexibilizado conforme as necessidades locais e cotidianas? Como se
deve lidar com as estruturas de convivência e de
ensino-aprendizagem? Como lidar com o tempo para permitir o trabalho
com projetos pessoais e grupais na escola? Para Hernández (2004, p.
13), para desenvolver projetos na escola é preciso superar a
dicotomia entre o tempo prescrito e os tempos escolhidos.
Falta
de tempo gera pressa, falta de paciência, e falta de gentileza. Essa
falta de gentileza, quase involuntária, meio doentia, pode ser vista
mais facilmente no trânsito das grandes cidades, mas se expressa
também na maneira como o professor trata seus conteúdos e seus
alunos, às vezes involuntariamente. O mesmo acontece nas reuniões
pedagógicas e em outras relações dentro da escola. Falta tempo,
falta paciência, acaba faltando alegria e humanidade.
A
ideologia produtivista e competitiva leva a escola para a aula
transmissiva, o professor que cobra do aluno, o aluno e pais que
querem um professor objetivo e servil, e todos acabam tendendo a
relações tecnicistas (desumanizadas) e com poucas oportunidades
para cada um descobrir-se e desenvolver-se como criativo, sensível,
solidário.
Assmann
(1998) propõe que se pense em dois tempos diferentes: o kairos
(kairológico) e o krono (cronológico).
O
tempo cronológico de que fala é aquele do relógio, cada vez mais
presente na vida das pessoas, rígido, ditador. Assmann fala da
obsessão pelo tempo exato e a racionalidade instrumental (1998, p.
207).
Suspeito
que hoje, mais que o relógio digital, é o relógio atômico que
continua provocando a secreta volúpia de estar chegando perto do
pleno domínio do tempo. O domínio do tempo sempre esteve ligado de
alguma forma, com o loteamento da eternidade [...] Creio que nossa
reconciliação com os avanços científico-tecnológicos deve
acontecer sem susto, num saboreamento existencial profundo, mas
também sem cegueira. O desejo de exatidão total na medição do
tempo não estará camuflando uma soberba ilimitada da razão
instrumental, que sonha com um controle onipotente de tudo,
alcançando até o coração da matéria? (Assmann,
1998, p. 208)
Saboreamento
existencial! O tempo kairológico é aquele mais ligado às nossas
vontades, à maneira como saboreamos cada momento.
Cada
um de nós certamente pode identificar situações que tomaram longos
espaços de tempo cronológico de suas vidas, mas que em sua
recordação ocupam apenas uma lembrança vaga como se fossem poucos
segundos, porque pouco valeram. Por outro lado, algumas vivências
que aconteceram em curtos tempos cronológicos são lembradas em
detalhes, sob muitos aspectos, cheias de nuances e sentimentos. Foram
situações intensamente vividas em que o tempo kairológico foi
muito maior do que o cronológico. Também no presente essas
diferenças acontecem.
Quando
experimentamos dor ou prazer, os instantes se tornam subjetivamente
assimétricos. Na dor o instante é um sufoco interminável, na
espera ele parece estagnar-se e no prazer ele dispara e se esvai. São
muitas as formas de percepção que comprovam que o tempo, para nós,
está de alguma forma supeditado [subordinado] àquilo que
experimentamos. (Assmann,
1998, p. 216, 217)
Assmann
fala de relação entre o controle exato e rígido do tempo e o poder
e a ambição das pessoas e organizações. Relaciona as idéias
empresariais de “just-in-time” e “qualidade total”, com o
tempo.
A
produção e circulação se propõe chegar à sincronização
cronológica entre oferta e procura (just-in-time, estoque zero).
Nisso tudo emerge uma nova noção do tempo, impregnando aos poucos
todo o sistema. Um novo conceito de tempo, e não só do cronológico,
já faz parte da concepção de qualidade. Qualidade total significa
também compactação temporal da eficiência. (Assmann,
1998, p. 209)
Quando
se fala em interdisciplinaridade o jeito de olhar o tempo é
importante. Interdisciplinaridade implica em integração das várias
áreas de conhecimento, no trabalho cooperativo entre professores de
diferentes disciplinas. Interdisciplinaridade requer a flexibilidade
dos papéis, tempos, enturmações e arranjos. Requer entrosamento e
desprendimento de interesses pessoais em função do coletivo. As
idéias de interdisciplinaridade de Fazenda (1985) já apontavam para
a necessidade de se ter um tempo “folgado” nas relações
escolares, ao contrário da ideologia produtivista.
Numa
sala de aula interdisciplinar existe sempre um ritual de encontro no
início, no meio e no fim. [...] Todos se percebem e gradativamente
se tornam parceiros. [...] Difere da comum desde a organização do
espaço arquitetônico à organização do tempo. [...] Predomina [a
premissa] do respeito ao modo de ser de cada um, ao caminho que cada
um empreende em busca de sua autonomia – portanto [...] decorre
mais do encontro entre indivíduos do que entre disciplinas.
(Fazenda,
1985, p. 86)
[...]
o projeto interdisciplinar pressupõe a presença de projetos
pessoais de vida; o processo de desvelamento de um processo pessoal
de vida é lento, exige uma espera adequada.
(Fazenda, 1985, p. 87)
As
aulas e projetos de que fala pressupõem parcerias, diálogos de idas
e vindas entre teorias e práticas, subjetividade com objetividade, a
ousadia da busca, e uma bibliografia “sempre
provisória, nunca definitiva”.
(Fazenda, 1985, p. 87)
Para
Garcia (2000):
Exercer
a interdisciplinaridade é ‘tecer’ um ambiente interativo, onde
os participantes estão ‘entrelaçados’ pelos saberes que são
capazes de produzir coletivamente. [...] Mas a complexa tarefa de
‘tecer’ kairos e assim engendrar uma oportunidade, requer uma
visão de totalidade [...] é uma arte intuitiva, onde se exerce mais
sensibilidade do que algum tipo de racionalidade.
(GARCIA, 2000, p. 108)
Tecer
kairos é uma arte intuitiva.
Há
algumas décadas até os filmes passaram a ser mais rápidos e
frenéticos. Filmes para crianças, como os desenhos de Walt Disney,
passaram a ter uma dinâmica em que muitas coisas acontecem ao mesmo
tempo e tudo se passa muito rapidamente. A indústria cinematográfica
faz filmes com dinâmica mais rápida para agradar o público, e o
público vai na onda. Mesmo nas novelas brasileiras as coisas
começaram a acontecer de forma mais rápida. Chegamos num ponto em
que não tínhamos mais programas para assistir que nos permitissem
descansar ou apreciá-los de forma descontraída. Essas coisas
mostram um movimento da sociedade, que pode ser sentido na escola.
Professores, gestores educacionais, alunos e pais foram se
pressionando para ter mais coisas em menos tempo e para que cada
instante pudesse ser mais interessante. Desejava-se que o instante
seguinte trouxesse sempre mais uma novidade. Mas precisamos
reencontrar um ponto de equilíbrio. Não queremos voltar ao passado,
nem ser saudosistas. Mas é preciso curar esse sentimento de falta de
tempo que muitos sentem e voltar a viver em paz, mesmo que seja com
períodos de leve estresse.
[...]
a mídia se interessa por espectadores, enquanto que a escola deve
interessar-se em sujeitos ativos do conhecimento. É por isso que um
bom aproveitamento do tempo escolar exige a transformação dele em
tempo pedagógico, ou seja, tempo vivencial da alegria de estar
aprendendo. (Assmann,
1998, p. 233,234)
E
os professores e gestores nas horas de reunião, ou de planejamento e
educação continuada, devem também viver a alegria de estar
aprendendo, com tempo e paz nas relações. Ainda Assmann nos aponta
algumas conclusões sobre como lidar com as pressões produtivistas,
de necessidade de otimização do tempo e de processos compactados e
superficialmente vividos, e ao mesmo tempo lidar com as necessidades
da escola com seu tempo pedagógico.
Em
si não há nada de novo em constatar que cada sociedade e cultura
sempre está lidando com um número plural de temporalidades –
cronológicas e kairológicas, tempos de relógio e tempos vivenciais
– ao dar formas organizadas às relações sociais. A fixação do
conceito de tempo em seu aspecto mensurável era condizente com um
determinado conceito de ciência e com a ânsia de controle máximo
dos tempos políticos e dos tempos produtivos. A expansão de uma
ideologia produtivista tornou cruelmente seletiva a valorização dos
tempos humanos, dividindo-os em tempos que valem (muito ou pouco) e
tempos que nada valem, desde o ponto de vista econômico-produtivista.
O novo desafio consiste em perceber que essa lógica moderna de
valorização e/ou desvalorização do tempo está entrando em
colapso no interior do próprio sistema produtivo. (Assmann,
1998, p. 215)
Porque
aqueles tempos nada valem?
Em
síntese, eu diria que a própria organização da economia, mas
sobretudo a organização plurivalórica da sociedade pós-moderna,
está mostrando a necessidade de pensar conjuntamente chrónos
e kairós
tempo-do-relógio e tempo das vivências, tempo natural e tempo
histórico.
(p. 216)
O
objetivo do tempo pedagógico não é apenas um ensino bem
estruturado, mas a configuração dessa parte instrucional da
pedagogia em função da construção personalizada e da celebração
do conhecimento como descoberta prazerosa.
A
dimensão temporal do processo de aprendizagem não se refere apenas
ao tempo cronológico (horários), mas a uma pluralidade de tempos
que estão em jogo, conjuntamente na educação: horário escolar,
tempo da informação, instrucional, tempo de leitura e estudo, tempo
de auto-expressão construtiva, tempo do erro como parte da
conjectura e da busca, tempo da inovação curricular criativa, tempo
de gestos e interações, tempo do brinquedo e do jogo, tempo para
desenvolver auto-estima, tempo de dizer sim à vida, tempo de
organizar esperanças.
O
entrelaçamento e direcionamento dessas múltiplas temporalidades
sobre a flecha do tempo cronológico não acontece pelo mero
transcurso dos dias letivos. Requer investimento intenso de energias
humanas para que o aspecto árduo e disciplinado do ensino e da
aprendizagem apontem a vivificação dos tempos pessoais de todos os
envolvidos.
(Assmann, 1998, p. 232, 233)
Sabendo
disso, podemos recorrer a Alves (1993) para entender melhor porque na
escola as coisas são diferentes. Ele nos diz:
[...]
toda a educação, as aprendizagens, dependem da linguagem. A criação
de sentidos não depende só de nós com a natureza. Depende dos
outros que nos ensinarão.
O
comportamento humano, individual e coletivo, se processa
concomitantemente com uma série de explicações intelectuais do
mesmo, explicações que pretendem ser racionais mas que, no fundo,
são ilusões ou ideologias. A verdade, entretanto, é que o
verdadeiro motor do comportamento não se encontra na razão, mas em
níveis obscurecidos pela pseudo-racionalidade que elaboramos. A
tarefa, portanto, é desmistificar esta pseudo-racionalidade a fim de
descobrir a lógica dos fatores que realmente determinam o
comportamento.
(Alves, 1993, p. 90)
[...]
enquanto a crítica das ilusões e das ideologias não for levada a
cabo estaremos condenados a ser prisioneiros de forças irracionais
que não conhecemos e que não desejamos conhecer. [...] Podemos
começar substituindo as afirmações pelas interrogações. Os
dogmas têm que ser transformados em dúvidas [...] os pontos de
chegada em pontos de partida. (Alves,
1993, p. 90)
Alves,
citando Freud e Marx, afirma que é o amor que decide a batalha
(1993, p. 92).
A
“verdade” não tem o poder para moldar o comportamento: o
comportamento emerge das emoções. [...] Não é a idéia que gera o
comportamento mas sim o interesse. As idéias nada mais são do que
trilhos nos quais o interesse corre. (Alves,
1993, p. 91)
Daí
a necessidade do afeto e respeito, além da necessidade do clima
democrático e de diálogo e negociação que precisam acontecer em
todas as situações que se deseje sejam educativas: na aula, na
reunião de professores, na cantina ou em qualquer outra dentro da
escola. Quem recebe ou desenvolve atividades em situações frias, ou
naquelas em que o controle dos tempos e resultados é imperativo, não
entra em vibração natural, não vê nascer seus potenciais, e não
dedica memórias nobres em suas construções mentais.
Entre
2001 e 2003 desenvolvi pesquisa junto a três escolas públicas.
Desde o início se ouvia falar, e mais do que isso, se sentia a falta
de tempo das pessoas. Faltava tempo para a reflexão. Faltava tempo
para o planejamento e organização das ações educativas. As
carências e urgências tomavam conta dos tempos dos educadores
(professores, gestores...). E em função dessa precariedade, as
relações entre as pessoas perdiam muito de seu potencial educativo:
nas reuniões de professores, nos horários de aula, nos
intervalos...
No
projeto CER, falávamos em criar espaços para reflexão, e no
princípio parecia impossível. Depois, como que de repente, esses
espaços foram sendo instituídos, com facilidade. A diretora tinha
esse poder na mão mas eu não sabia. De um momento para outro as
diretoras assumiram que aconteceriam os Encontros e para isso
conseguiram aprovação no nível da Diretoria de Ensino.
(Vallin, 2004, p.174)
A
grande conclusão a que cheguei é que, como insiste Freire (1996,
p.58), precisamos tomar a história em nossas mãos. Numa situação
em que as pessoas encontram-se destruídas, para que possam
reconstruir-se,
[...]
é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não
podem comparecer à luta como quase “coisas”, para depois serem
homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em
que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é a
posteriori.
A luta por esta reconstrução começa no auto-reconhecimento de
homens destruídos. [...] Não há outro caminho senão o da prática
de uma pedagogia humanizadora [...].
( Freire, , 1987, p. 55, grifos do autor)
Quem
vive a escola e a falta de tempo do professor e dos gestores, ao
afastar-se e analisar o problema, pode perceber melhor que não é só
uma questão de tempo, ou de verbas especiais, mas trata-se também
de uma luta para desenvolver a consciência crítica a respeito do
valor da reflexão e reconstrução conjunta. Trata-se de dar valor
ao diálogo, ao planejamento coletivo, às avaliações apresentadas
e compartilhadas em comunidade.
Não
se trata de uma defesa da escola tradicional. Ao contrário. Os
hábitos de escola que hoje fazem parte do senso comum são aqueles
que Arroyo (2004) cita como escola transmissiva e Freire (1987) chama
de ensino bancário. Também não se trata de afrouxar as
responsabilidades dos educandos. Ao contrário. Desenvolver a
cidadania e a autonomia (Freire, 1996) significam atitudes que
colocam cada vez mais os sujeitos ligados às responsabilidades de
seus atos e dos movimentos em que participam. Propõe-se a diminuição
do fazer ativista, levando alunos e educadores ao desenvolvimento da
consciência, e com isso a responsabilidade. Também não se trata de
uma dicotomia entre escola e empresa. Ao contrário. Propõe-se uma
escola que forme cidadãos criativos, críticos, solidários e que
saberão levar estes valores e competências também aos ambientes
empresariais, e que além de se integrarem ao mundo do trabalho, se
lançarão a construir um mundo melhor. Nesse mundo melhor, espera-se
que o tempo seja relativo, e que o principal seja a paz e alegria das
pessoas. Trabalhar, produzir e ganhar dinheiro significa envolver-se
com o “mundo cão” sim, mas não pode significar aceitá-lo como
se já estivesse dado. Na empresa, o cidadão pleno estará sempre na
luta para construir relações mais humanas, produtos mais éticos,
envolvimentos empresariais mais responsáveis... E estará ajudando
a construir e desenvolver empresas e instituições mais éticas,
responsáveis e solidárias.
Por
isso é preciso que se veja a questão do tempo como um problema
educativo. É preciso que as pessoas da escola, e dos sistemas de
ensino, se coloquem em comunhão, buscando valorizar cada momento
vivido no coletivo, valorizando a reflexão em comunidade, com estudo
e trabalho pedagógico. É preciso ver o educador como um sujeito
que, em diálogo com seus pares e com a comunidade, constrói e
reconstrói (a prática educativa, os ambientes de aprendizagem, o
jeito de fazer escola) e não como um aplicador de processos ou
reprodutor de esquemas de ensino.
Não
adianta ficar repetindo, como na embolada:
Você
quer parar o tempo
E
o tempo não tem parada
Você
quer parar o tempo
O
tempo não tem parada
(Alceu
Valença – Embolada do tempo)
Talvez nossa resposta
já estivesse escrita há muito tempo:
Uns,
com os olhos postos no passado,
Vêem
o que não vêem; outros fitos
Os
mesmos olhos no futuro, vêem
O
que não pode ver-se.
Por
que tão longe ir pôr o que está perto –
A
segurança nossa? Este é o dia,
Esta
é a hora, este o momento, isto
É
quem somos, e é tudo.
Perene
flui a interminável hora
Que
nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em
que vivemos, morreremos. Colhe
O
dia, porque és ele.
(Fernando
Pessoa em De Nicola, 1995)
Este
é o dia, esta é a hora. Vamos ao saboreamento existencial.
Aprendamos a arte intuitiva de tecer kairos. Todos os tempos devem
valer.
Referências
Bibliográficas
ALVES,
Rubem. Conversas
com quem gosta de ensinar.
-27. ed. – São Paulo: Cortez, 1993.
ARROYO,
Miguel G. Imagens
quebradas:
trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ : Vozes,
2004.
ARROYO,
Miguel G. Ofício
de mestre:
imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.
ASSMANN,
Hugo. Reencantar
a educação:
rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
DALI,
Salvador. A
persistência da memória. Disponível
em http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Persist%C3%AAncia_da_Mem%C3%B3ria
em 17/8/2005
DE
NICOLA, José; INFANTE, Ulisses. Fernando
Pessoa: livro do professor.
São Paulo, Scipione: 1995.
FAZENDA,
Ivani C. A. Interdisciplinaridade:
história, teoria e pesquisa. -2. ed. – Campinas, SP : Papirus,
1985.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia
da autonomia:
saberes necessários à prática educativa. 7. edição, São Paulo:
Paz e Terra, 1996.
FREIRE,
Paulo. Pedagogia
do oprimido.
17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FULLAN,
M. ; HARGREAVES, A. A
escola como organização aprendente.
Porto Alegre: Artmed, 2000.
GARCIA,
Joe de Assis. Interdisciplinaridade,
tempo e currículo.
Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2000.
HERNÁNDEZ,
Fernando. O tempo nos projetos de trabalho. Pátio,
revista pedagógica.
n. 30. Maio/Julho/2004. p. 12-15
VALENÇA,
Alceu. Embolada
do tempo.
Disponível em http://cultura.dgabc.com.br/materia.asp?materia=456780
– (Diário do Grande ABC OnLine – 21/1/2005)
VALLIN,
Celso. Projeto
CER:
comunidade escolar de estudo, trabalho e reflexão. Tese de
doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2004. Disponível em
http://pontodeencontro.proinfo.mec.gov.br/
VIOLA,
Paulinho. Sinal
fechado.
Disponível em
http://paulinho-da-viola.letras.terra.com.br/letras/48064/ em
17/8/2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário