quarta-feira, 6 de novembro de 2013

VALLIN, 2005 - artigo - O eterno problema da FALTA de tempo
(São 8 páginas - por isso é melhor imprimir e ler em papel!)

O eterno problema da FALTA de tempo

Celso Vallin, 2005

-Olá como vai.
-Eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro
-Me perdoe a pressa.
-É a alma dos nossos negócios.
-O sinal...
-Eu espero você.
-Vai abrir...
Paulinho da Viola fez música com a angústia da falta de tempo, entre dois amigos que se encontravam num cruzamento de trânsito, enquanto viviam aqueles segundos de espera do semáforo abrir.
Salvador Dali pintou relógios que escorrem eternizando suas impressões sobre o tempo.
Arroyo estuda a escola brasileira e a vida do educador e conclui: “o tempo aparece cada vez com maior destaque como uma categoria que exige nossa atenção profissional” (Arroyo, 2004, p.23).
Mesmo quem vive a realidade do chamado ‘primeiro mundo’ aponta a falta de tempo como um empecilho aos avanços da escola.
Este é um tema de importância, a se levar em conta que, cada vez mais, temos exemplos, a partir dos esforços de reforma de todo o mundo, de que a falta de tempo é o maior impedimento à aprendizagem dos docentes e à melhoria da escola. (Hernández, 2004, p. 13)
Hoje é comum que as pessoas sintam falta de tempo e pode-se discutir como organizar melhor o uso do tempo. A idéia é que a pessoa organize melhor sua vida, de maneira a “ganhar tempo”. Mas o que seria organizar melhor o nosso tempo?
Num primeiro olhar sobre o eterno problema da falta de tempo, nossos impulsos e nossa racionalidade nos indicam que devemos aproveitar melhor os minutos, fazer nossas atividades de forma mais rápida e objetiva, e talvez aumentar o tempo dedicado às atividades “produtivas”. Não é difícil encontrar manuais, dicas e até cursos que exploram essa linha de pensamento, recomendando até o uso de planilha, no computador ou no papel mesmo, de modo a racionalizar o uso do tempo. Muitas vezes dedicamos muito tempo a questões que consideramos de pouca importância, e acabamos sem tempo para questões essenciais. Assim, cuidar da maneira como usamos nosso tempo pode nos trazer alguns benefícios importantes.
Mas é preciso aprender a cumprir os compromissos de tempo mas também se manter livre, sem se afogar nas demandas de urgência do cotidiano. É preciso aprender a ser dono de nosso próprio tempo.
Observações mais filosóficas nos remetem a outros pensamentos.
[...] o aprendiz é como um viajante que se detém o tempo que for necessário nos lugares de seu interesse, que desfruta do encontro inesperado e que se sente atraído mais pela intensidade da experiência do que pela quantidade de postais que acumula. (Hernández, 2004, p. 13)
Será que o tempo existe mesmo? Não seria só uma criação cultural? Tudo não passaria de uma questão de estabelecimento de prioridades e significados?
Muitos esquemas de pensamento, de trabalho, e de organização na escola são emprestados do mundo dos negócios. Alguns deles vêm para ajudar, mas outros podem distorcer as verdadeiras funções da escola.
Algumas pessoas agem de forma semelhante à de um ‘patrão’, mesmo na escola. Em geral são diretores, coordenadores, supervisores, dirigentes e até ‘professores diante de seus alunos’. Outros acabam ficando em posição semelhante à de ‘empregados’. Também na escola são vividas relações semelhantes às de patrão e empregado. Mas, como na sociedade em geral, muitos estão como ‘patrão’ numa situação e ao mesmo tempo como ‘empregado’ em outra. Algumas vezes a pessoa que está no papel de patrão age de modo a “tirar o suco” de outras pessoas com quem tem algum vínculo no trabalho, aqueles que sente como “seus” empregados, ou seja, procura fazer com que os outros rendam o máximo. Essa relação entre as pessoas, quando se sentem na obrigação de se comportar como patrão e empregados, essa assunção de papéis, gera um clima de pressão e de incomodação. Tira a paz e alegria das pessoas. Elas acabam sentindo-se exploradas, ou sempre em dívida com o sistema. Existe ai também uma auto-imposição por metas de “produtividade”, e isso acontece até na escola. Esse é um dos fatores que cria a sensação de falta de tempo. Mesmo pessoas que estão em cargos de gestão sentem-se cobradas e sofrem dessa “falta de tempo” real ou psicológica. Sentem que deveriam fazer mais!
As relações trabalhistas vêm sofrendo mudanças e temos cada vez mais pessoas ‘contratadas para prestar serviços’ e não como empregados (de carteira assinada). Esse é outro fator de pressão e de instabilidade. Ajuda as instituições a aproveitarem o máximo das pessoas, e colabora para que elas sintam-se em dívida, ou com falta de tempo. Mais pessoas trabalham por contrato, e as relações de trabalho são cada vez mais temporárias e instáveis. Por receio de ficar sem trabalho, ou sem dinheiro, as pessoas acabam aceitando mais responsabilidades do que gostariam, ou poderiam, e ficam sobrecarregadas. Por outro lado, quando limitam adequadamente o volume de trabalho contratado, correm o risco de ficar alguns períodos sem trabalho ou com pouco trabalho, o que também gera estresse.
As pessoas estressadas costumam se renovar nas férias, mas quem presta serviços por contratos (escritos ou verbais) não costuma contratar períodos de férias. Mesmo quando estão sem contratos, ainda que sejam por pequenos períodos (um ou dois meses), não se sentem em paz para viver como se estivessem em férias. Ocupam o tempo e a mente buscando novos contratos e vivem a insegurança financeira.
Por serem mal remunerados, ou pelo receio de ficar com pouco trabalho (aulas ou outros trabalhos) há, muitos profissionais de educação que assumem mais responsabilidades do que gostariam (aulas, atribuições de gestão, e outras), às vezes em mais de um endereço, e acabam sem tempo para os necessários trabalhos de planejamento, reflexão e estudo, nos planos pessoal e coletivo. Essa situação, aliada às dificuldades naturais do magistério também gera estresse.
Empregados ou prestadores de serviços, ambos acabam na mesma situação. Sentem-se sempre em dívida.
Quando se trabalha a serviço de outros seres humanos, cercado por expectativas difusas, culpa e frustração tornam-se parte do serviço. Eis as palavras de um dos professores que participou do estudo sobre o tempo de preparação: “Ensinar é uma profissão que, quando você vai para casa, sempre leva material em que pensar. Você pensa ‘deveria estar fazendo tal coisa’. Sinto-me culpado por sentar-me durante meia hora.” Estas expectativas tão absurdamente elevadas, muitas delas auto-impostas [...] reforçam o individualismo. (Fullan e Hargreaves, 2000, p. 61)
O estresse não é sempre ruim. Um pouco de estresse, pode ajudar a superar limitações pessoais, e até tirar as pessoas do marasmo e desânimo das rotinas. Mas as pessoas precisam saber se cuidar e estabelecer limites entre o estresse leve e produtivo, daquele que destrói vidas: a do estressado e a de quem convive com ele. A escola não é uma instituição que visa o lucro e a competitividade, e nela o melhor a ser feito nem sempre é resultado de uma ponderação de ordem simplesmente racional. Deve ser um ambiente com espaço e compreensão para o erro e acerto, para diferentes ritmos, investigações e experimentações – tudo isso vai contra algumas idéias empresariais de racionalização do tempo. Nos ambientes de aprendizagem deve haver paz nas relações de modo a permitir perdas, ineficiências e reflexões pessoais e coletivas. Na escola pode-se lidar com situações de algum estresse e cobrança, mas sempre de olho no processo de aprendizagem de cada um e do coletivo.
Tanto em relações de emprego, como em relações de prestação de serviços, a competitividade favorece que uns desqualifiquem o trabalho dos outros. Muitas vezes isso acontece de forma velada. Esses comportamentos desfavorecem a articulação de trabalhos cooperativos e a formação de equipes e de coletivos. Se essa falta de companheirismo e solidariedade no trabalho já é ruim na empresa, na escola é mais grave.
Tentar resolver o problema da falta de tempo imitando soluções empresariais pode estar reforçando os esquemas rígidos em que a escola está tradicionalmente estruturada.
Enfrentar o tempo escolar requer não esquecer que aqueles que pensaram o ‘dever ser’ da escola no início do século XX optaram pela carta da racionalização, entendida como ‘a organização da vida por meio da divisão e da coordenação das atividades fundamentada em um estudo exato das relações dos homens entre si, com suas ferramentas e seu ambiente, objetivando alcançar maior eficácia e produtividade’. (Hernández, 2004, p. 13)
Não buscamos desenvolver a autonomia dos educandos? Desenvolvimento de autonomia requer oportunidades de experimentação, com possibilidade para acertos e erros. A otimização do tempo não estaria contribuindo para um modo de agir dentro de critérios e padrões rígidos demais para um ambiente de escola?
É a lógica “transmissiva”, que organiza todos os tempos e os espaços tanto do professor quanto do aluno, em torno dos “conteúdos” a serem transmitidos. Uma suposta lógica dos conteúdos a serem transmitidos constitui o eixo vertebrador da organização dos graus, séries, disciplinas, grades, avaliações, recuperações, aprovações ou reprovações. (Arroyo, 2004, p. 193)
Conseguimos tempos de formação e planejamento, mas como libertá-los dos tempos de aula, da rigidez curricular, dos rituais das provas...? Uma professora destacou que as primeiras vítimas dessa máquina do tempo ou dessa lógica temporal férrea são as professoras e os professores. Os depoimentos foram mostrando como estamos tão acostumados com essa lógica temporal instituída que nem a questionamos e até a defendemos como se fizesse parte de nosso ritmo temporal docente e humano. Não percebemos que muitos dos problemas de nosso trabalho têm sua origem na lógica temporal a que está submetida nossa docência. Se nossos tempos fossem organizados de outra maneira não seríamos mais livres? (Arroyo, 2004, p. 195)
Escola cidadã é aquela que contribui para que educandos e educadores encontrem e desenvolvam seu potencial humano. O ambiente ajuda as pessoas a serem mais gente. Ajuda a aprender a conviver consigo mesmo, com o semelhante e com a natureza. A otimização dos tempos não estaria acorrentando as pessoas aos processos já estabelecidos? Não estaria dificultando o jeito humano de ser, criativo, crítico, autoral?
Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. (Freire, 1987, p. 70, grifos do autor)
Sendo assim, o uso do tempo não deveria estar sendo discutido e flexibilizado conforme as necessidades locais e cotidianas? Como se deve lidar com as estruturas de convivência e de ensino-aprendizagem? Como lidar com o tempo para permitir o trabalho com projetos pessoais e grupais na escola? Para Hernández (2004, p. 13), para desenvolver projetos na escola é preciso superar a dicotomia entre o tempo prescrito e os tempos escolhidos.
Falta de tempo gera pressa, falta de paciência, e falta de gentileza. Essa falta de gentileza, quase involuntária, meio doentia, pode ser vista mais facilmente no trânsito das grandes cidades, mas se expressa também na maneira como o professor trata seus conteúdos e seus alunos, às vezes involuntariamente. O mesmo acontece nas reuniões pedagógicas e em outras relações dentro da escola. Falta tempo, falta paciência, acaba faltando alegria e humanidade.
A ideologia produtivista e competitiva leva a escola para a aula transmissiva, o professor que cobra do aluno, o aluno e pais que querem um professor objetivo e servil, e todos acabam tendendo a relações tecnicistas (desumanizadas) e com poucas oportunidades para cada um descobrir-se e desenvolver-se como criativo, sensível, solidário.
Assmann (1998) propõe que se pense em dois tempos diferentes: o kairos (kairológico) e o krono (cronológico).
O tempo cronológico de que fala é aquele do relógio, cada vez mais presente na vida das pessoas, rígido, ditador. Assmann fala da obsessão pelo tempo exato e a racionalidade instrumental (1998, p. 207).
Suspeito que hoje, mais que o relógio digital, é o relógio atômico que continua provocando a secreta volúpia de estar chegando perto do pleno domínio do tempo. O domínio do tempo sempre esteve ligado de alguma forma, com o loteamento da eternidade [...] Creio que nossa reconciliação com os avanços científico-tecnológicos deve acontecer sem susto, num saboreamento existencial profundo, mas também sem cegueira. O desejo de exatidão total na medição do tempo não estará camuflando uma soberba ilimitada da razão instrumental, que sonha com um controle onipotente de tudo, alcançando até o coração da matéria? (Assmann, 1998, p. 208)
Saboreamento existencial! O tempo kairológico é aquele mais ligado às nossas vontades, à maneira como saboreamos cada momento.
Cada um de nós certamente pode identificar situações que tomaram longos espaços de tempo cronológico de suas vidas, mas que em sua recordação ocupam apenas uma lembrança vaga como se fossem poucos segundos, porque pouco valeram. Por outro lado, algumas vivências que aconteceram em curtos tempos cronológicos são lembradas em detalhes, sob muitos aspectos, cheias de nuances e sentimentos. Foram situações intensamente vividas em que o tempo kairológico foi muito maior do que o cronológico. Também no presente essas diferenças acontecem.
Quando experimentamos dor ou prazer, os instantes se tornam subjetivamente assimétricos. Na dor o instante é um sufoco interminável, na espera ele parece estagnar-se e no prazer ele dispara e se esvai. São muitas as formas de percepção que comprovam que o tempo, para nós, está de alguma forma supeditado [subordinado] àquilo que experimentamos. (Assmann, 1998, p. 216, 217)
Assmann fala de relação entre o controle exato e rígido do tempo e o poder e a ambição das pessoas e organizações. Relaciona as idéias empresariais de “just-in-time” e “qualidade total”, com o tempo.
A produção e circulação se propõe chegar à sincronização cronológica entre oferta e procura (just-in-time, estoque zero). Nisso tudo emerge uma nova noção do tempo, impregnando aos poucos todo o sistema. Um novo conceito de tempo, e não só do cronológico, já faz parte da concepção de qualidade. Qualidade total significa também compactação temporal da eficiência. (Assmann, 1998, p. 209)
Quando se fala em interdisciplinaridade o jeito de olhar o tempo é importante. Interdisciplinaridade implica em integração das várias áreas de conhecimento, no trabalho cooperativo entre professores de diferentes disciplinas. Interdisciplinaridade requer a flexibilidade dos papéis, tempos, enturmações e arranjos. Requer entrosamento e desprendimento de interesses pessoais em função do coletivo. As idéias de interdisciplinaridade de Fazenda (1985) já apontavam para a necessidade de se ter um tempo “folgado” nas relações escolares, ao contrário da ideologia produtivista.
Numa sala de aula interdisciplinar existe sempre um ritual de encontro no início, no meio e no fim. [...] Todos se percebem e gradativamente se tornam parceiros. [...] Difere da comum desde a organização do espaço arquitetônico à organização do tempo. [...] Predomina [a premissa] do respeito ao modo de ser de cada um, ao caminho que cada um empreende em busca de sua autonomia – portanto [...] decorre mais do encontro entre indivíduos do que entre disciplinas. (Fazenda, 1985, p. 86)
[...] o projeto interdisciplinar pressupõe a presença de projetos pessoais de vida; o processo de desvelamento de um processo pessoal de vida é lento, exige uma espera adequada. (Fazenda, 1985, p. 87)
As aulas e projetos de que fala pressupõem parcerias, diálogos de idas e vindas entre teorias e práticas, subjetividade com objetividade, a ousadia da busca, e uma bibliografia “sempre provisória, nunca definitiva”. (Fazenda, 1985, p. 87)
Para Garcia (2000):
Exercer a interdisciplinaridade é ‘tecer’ um ambiente interativo, onde os participantes estão ‘entrelaçados’ pelos saberes que são capazes de produzir coletivamente. [...] Mas a complexa tarefa de ‘tecer’ kairos e assim engendrar uma oportunidade, requer uma visão de totalidade [...] é uma arte intuitiva, onde se exerce mais sensibilidade do que algum tipo de racionalidade. (GARCIA, 2000, p. 108)
Tecer kairos é uma arte intuitiva.
Há algumas décadas até os filmes passaram a ser mais rápidos e frenéticos. Filmes para crianças, como os desenhos de Walt Disney, passaram a ter uma dinâmica em que muitas coisas acontecem ao mesmo tempo e tudo se passa muito rapidamente. A indústria cinematográfica faz filmes com dinâmica mais rápida para agradar o público, e o público vai na onda. Mesmo nas novelas brasileiras as coisas começaram a acontecer de forma mais rápida. Chegamos num ponto em que não tínhamos mais programas para assistir que nos permitissem descansar ou apreciá-los de forma descontraída. Essas coisas mostram um movimento da sociedade, que pode ser sentido na escola. Professores, gestores educacionais, alunos e pais foram se pressionando para ter mais coisas em menos tempo e para que cada instante pudesse ser mais interessante. Desejava-se que o instante seguinte trouxesse sempre mais uma novidade. Mas precisamos reencontrar um ponto de equilíbrio. Não queremos voltar ao passado, nem ser saudosistas. Mas é preciso curar esse sentimento de falta de tempo que muitos sentem e voltar a viver em paz, mesmo que seja com períodos de leve estresse.
[...] a mídia se interessa por espectadores, enquanto que a escola deve interessar-se em sujeitos ativos do conhecimento. É por isso que um bom aproveitamento do tempo escolar exige a transformação dele em tempo pedagógico, ou seja, tempo vivencial da alegria de estar aprendendo. (Assmann, 1998, p. 233,234)
E os professores e gestores nas horas de reunião, ou de planejamento e educação continuada, devem também viver a alegria de estar aprendendo, com tempo e paz nas relações. Ainda Assmann nos aponta algumas conclusões sobre como lidar com as pressões produtivistas, de necessidade de otimização do tempo e de processos compactados e superficialmente vividos, e ao mesmo tempo lidar com as necessidades da escola com seu tempo pedagógico.
Em si não há nada de novo em constatar que cada sociedade e cultura sempre está lidando com um número plural de temporalidades – cronológicas e kairológicas, tempos de relógio e tempos vivenciais – ao dar formas organizadas às relações sociais. A fixação do conceito de tempo em seu aspecto mensurável era condizente com um determinado conceito de ciência e com a ânsia de controle máximo dos tempos políticos e dos tempos produtivos. A expansão de uma ideologia produtivista tornou cruelmente seletiva a valorização dos tempos humanos, dividindo-os em tempos que valem (muito ou pouco) e tempos que nada valem, desde o ponto de vista econômico-produtivista. O novo desafio consiste em perceber que essa lógica moderna de valorização e/ou desvalorização do tempo está entrando em colapso no interior do próprio sistema produtivo. (Assmann, 1998, p. 215)
Porque aqueles tempos nada valem?
Em síntese, eu diria que a própria organização da economia, mas sobretudo a organização plurivalórica da sociedade pós-moderna, está mostrando a necessidade de pensar conjuntamente chrónos e kairós tempo-do-relógio e tempo das vivências, tempo natural e tempo histórico. (p. 216)
O objetivo do tempo pedagógico não é apenas um ensino bem estruturado, mas a configuração dessa parte instrucional da pedagogia em função da construção personalizada e da celebração do conhecimento como descoberta prazerosa.
A dimensão temporal do processo de aprendizagem não se refere apenas ao tempo cronológico (horários), mas a uma pluralidade de tempos que estão em jogo, conjuntamente na educação: horário escolar, tempo da informação, instrucional, tempo de leitura e estudo, tempo de auto-expressão construtiva, tempo do erro como parte da conjectura e da busca, tempo da inovação curricular criativa, tempo de gestos e interações, tempo do brinquedo e do jogo, tempo para desenvolver auto-estima, tempo de dizer sim à vida, tempo de organizar esperanças.
O entrelaçamento e direcionamento dessas múltiplas temporalidades sobre a flecha do tempo cronológico não acontece pelo mero transcurso dos dias letivos. Requer investimento intenso de energias humanas para que o aspecto árduo e disciplinado do ensino e da aprendizagem apontem a vivificação dos tempos pessoais de todos os envolvidos. (Assmann, 1998, p. 232, 233)
Sabendo disso, podemos recorrer a Alves (1993) para entender melhor porque na escola as coisas são diferentes. Ele nos diz:
[...] toda a educação, as aprendizagens, dependem da linguagem. A criação de sentidos não depende só de nós com a natureza. Depende dos outros que nos ensinarão.
O comportamento humano, individual e coletivo, se processa concomitantemente com uma série de explicações intelectuais do mesmo, explicações que pretendem ser racionais mas que, no fundo, são ilusões ou ideologias. A verdade, entretanto, é que o verdadeiro motor do comportamento não se encontra na razão, mas em níveis obscurecidos pela pseudo-racionalidade que elaboramos. A tarefa, portanto, é desmistificar esta pseudo-racionalidade a fim de descobrir a lógica dos fatores que realmente determinam o comportamento. (Alves, 1993, p. 90)
[...] enquanto a crítica das ilusões e das ideologias não for levada a cabo estaremos condenados a ser prisioneiros de forças irracionais que não conhecemos e que não desejamos conhecer. [...] Podemos começar substituindo as afirmações pelas interrogações. Os dogmas têm que ser transformados em dúvidas [...] os pontos de chegada em pontos de partida. (Alves, 1993, p. 90)
Alves, citando Freud e Marx, afirma que é o amor que decide a batalha (1993, p. 92).
A “verdade” não tem o poder para moldar o comportamento: o comportamento emerge das emoções. [...] Não é a idéia que gera o comportamento mas sim o interesse. As idéias nada mais são do que trilhos nos quais o interesse corre. (Alves, 1993, p. 91)
Daí a necessidade do afeto e respeito, além da necessidade do clima democrático e de diálogo e negociação que precisam acontecer em todas as situações que se deseje sejam educativas: na aula, na reunião de professores, na cantina ou em qualquer outra dentro da escola. Quem recebe ou desenvolve atividades em situações frias, ou naquelas em que o controle dos tempos e resultados é imperativo, não entra em vibração natural, não vê nascer seus potenciais, e não dedica memórias nobres em suas construções mentais.
Entre 2001 e 2003 desenvolvi pesquisa junto a três escolas públicas. Desde o início se ouvia falar, e mais do que isso, se sentia a falta de tempo das pessoas. Faltava tempo para a reflexão. Faltava tempo para o planejamento e organização das ações educativas. As carências e urgências tomavam conta dos tempos dos educadores (professores, gestores...). E em função dessa precariedade, as relações entre as pessoas perdiam muito de seu potencial educativo: nas reuniões de professores, nos horários de aula, nos intervalos...
No projeto CER, falávamos em criar espaços para reflexão, e no princípio parecia impossível. Depois, como que de repente, esses espaços foram sendo instituídos, com facilidade. A diretora tinha esse poder na mão mas eu não sabia. De um momento para outro as diretoras assumiram que aconteceriam os Encontros e para isso conseguiram aprovação no nível da Diretoria de Ensino. (Vallin, 2004, p.174)
A grande conclusão a que cheguei é que, como insiste Freire (1996, p.58), precisamos tomar a história em nossas mãos. Numa situação em que as pessoas encontram-se destruídas, para que possam reconstruir-se,
[...] é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase “coisas”, para depois serem homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa no auto-reconhecimento de homens destruídos. [...] Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora [...]. ( Freire, , 1987, p. 55, grifos do autor)
Quem vive a escola e a falta de tempo do professor e dos gestores, ao afastar-se e analisar o problema, pode perceber melhor que não é só uma questão de tempo, ou de verbas especiais, mas trata-se também de uma luta para desenvolver a consciência crítica a respeito do valor da reflexão e reconstrução conjunta. Trata-se de dar valor ao diálogo, ao planejamento coletivo, às avaliações apresentadas e compartilhadas em comunidade.
Não se trata de uma defesa da escola tradicional. Ao contrário. Os hábitos de escola que hoje fazem parte do senso comum são aqueles que Arroyo (2004) cita como escola transmissiva e Freire (1987) chama de ensino bancário. Também não se trata de afrouxar as responsabilidades dos educandos. Ao contrário. Desenvolver a cidadania e a autonomia (Freire, 1996) significam atitudes que colocam cada vez mais os sujeitos ligados às responsabilidades de seus atos e dos movimentos em que participam. Propõe-se a diminuição do fazer ativista, levando alunos e educadores ao desenvolvimento da consciência, e com isso a responsabilidade. Também não se trata de uma dicotomia entre escola e empresa. Ao contrário. Propõe-se uma escola que forme cidadãos criativos, críticos, solidários e que saberão levar estes valores e competências também aos ambientes empresariais, e que além de se integrarem ao mundo do trabalho, se lançarão a construir um mundo melhor. Nesse mundo melhor, espera-se que o tempo seja relativo, e que o principal seja a paz e alegria das pessoas. Trabalhar, produzir e ganhar dinheiro significa envolver-se com o “mundo cão” sim, mas não pode significar aceitá-lo como se já estivesse dado. Na empresa, o cidadão pleno estará sempre na luta para construir relações mais humanas, produtos mais éticos, envolvimentos empresariais mais responsáveis... E estará ajudando a construir e desenvolver empresas e instituições mais éticas, responsáveis e solidárias.
Por isso é preciso que se veja a questão do tempo como um problema educativo. É preciso que as pessoas da escola, e dos sistemas de ensino, se coloquem em comunhão, buscando valorizar cada momento vivido no coletivo, valorizando a reflexão em comunidade, com estudo e trabalho pedagógico. É preciso ver o educador como um sujeito que, em diálogo com seus pares e com a comunidade, constrói e reconstrói (a prática educativa, os ambientes de aprendizagem, o jeito de fazer escola) e não como um aplicador de processos ou reprodutor de esquemas de ensino.
Não adianta ficar repetindo, como na embolada:
Você quer parar o tempo
E o tempo não tem parada
Você quer parar o tempo
O tempo não tem parada

(Alceu Valença – Embolada do tempo)

Talvez nossa resposta já estivesse escrita há muito tempo:
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

(Fernando Pessoa em De Nicola, 1995)

Este é o dia, esta é a hora. Vamos ao saboreamento existencial. Aprendamos a arte intuitiva de tecer kairos. Todos os tempos devem valer.


Referências Bibliográficas

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. -27. ed. – São Paulo: Cortez, 1993.
ARROYO, Miguel G. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ : Vozes, 2004.
ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
DALI, Salvador. A persistência da memória. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Persist%C3%AAncia_da_Mem%C3%B3ria em 17/8/2005
DE NICOLA, José; INFANTE, Ulisses. Fernando Pessoa: livro do professor. São Paulo, Scipione: 1995.
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. -2. ed. – Campinas, SP : Papirus, 1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7. edição, São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FULLAN, M. ; HARGREAVES, A. A escola como organização aprendente. Porto Alegre: Artmed, 2000.
GARCIA, Joe de Assis. Interdisciplinaridade, tempo e currículo. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2000.
HERNÁNDEZ, Fernando. O tempo nos projetos de trabalho. Pátio, revista pedagógica. n. 30. Maio/Julho/2004. p. 12-15
VALENÇA, Alceu. Embolada do tempo. Disponível em http://cultura.dgabc.com.br/materia.asp?materia=456780 – (Diário do Grande ABC OnLine – 21/1/2005)
VALLIN, Celso. Projeto CER: comunidade escolar de estudo, trabalho e reflexão. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2004. Disponível em http://pontodeencontro.proinfo.mec.gov.br/

VIOLA, Paulinho. Sinal fechado. Disponível em http://paulinho-da-viola.letras.terra.com.br/letras/48064/ em 17/8/2005

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