EDUCAÇÃO NA PANDEMIA ?
Freire mais do que nunca.
Celso Vallin
(prof. da Universidade
Federal de Lavras. Dep. de Educação. maio de 2020)
Em
2020 a pandemia chegou e foi rápida. Difícil saber quando a
situação poderia voltar a ser como antes. Isso leva a reflexões
sobre o que fazer nas escolas, e na educação, porque torna
necessário ficar em casa, meses seguidos.
Alguns
defendem ficar sem aulas mesmo, porque nas salas de aula as pessoas
ficam muito próximas e por muito tempo. E nos intervalos da escola,
as aglomerações de pessoas se tornam mais intensas ainda. Além do
que, qual o problema de se atrasar em 3 ou 6 meses a formação de
uma pessoa? Afinal, entre educação infantil e superior são pelo
menos 18 anos de escola.
Outros
defendem que não se perca tempo. No fundo ainda impera a ideia força
de que "tempo é dinheiro". Nesse caso os argumentos são vários: que
o fim da pandemia pode demorar; que estudantes não podem se atrasar
nos estudos; que educadores(as) estão recebendo salários e precisam
trazer resultados; que pela internet tudo pode ser resolvido; e por
ai vai.
Como
seria uma posição intermediária, entre esses dois extremos?
Vejamos as condições. A internet, não está disponível em todo
lugar, mas já funciona em muitos. Professores(as), a maioria não
têm preparo anterior para trabalhar a distância, mas usa celulares
e computadores e poderia ajudar de alguma forma, a partir de suas
casas. Crianças e adolescentes, estando em casa, têm muito tempo
disponível e, se dedicarem aos estudos poderia ser bom. A educação
e todo aparato escolar poderia estar em funcionamento, mesmo que não
fosse para fazer tudo como de costume, mas experimentando novas
possibilidades.
Seria
possível aproveitar esse novo regime para gestar alguma melhoria? Ou
fazer algo seria só para tampar buraco? Entendo que não se pode
esperar que tudo ande como se nada de diferente estivesse
acontecendo. Até porque, é diferente.
Não
podemos assumir que temos a internet disponível para toda gente
porque não temos. Em áreas rurais, em vários locais não se
consegue nem sinal
de telefone.
Algumas famílias só têm equipamentos antigos, com pouca capacidade
e lentos. Ou não têm. Outras compartilham equipamentos entre várias
pessoas na família (celular e computador). Embora existam
contratações de internet com grande fluxo de dados, muita gente não
tem dinheiro para isso e usa um acesso lento e instável. E existem
pessoas que estão ganhando pouco e darão prioridade para a comida,
a conta d'água, e não a internet. Enfim, todas as soluções
dependem do uso da internet. É preciso lembrar dos que têm
dificuldades, e assim trabalhar com flexibilidade de tempo, demandar
coisas que possam funcionar com aparatos simples, e ir descobrindo o
que é possível fazer em cada situação. Não se deve exigir muito,
porque estaríamos excluindo as pessoas que já têm outros
problemas.
Devemos
considerar ainda o fato de que muita gente tem moradia precária, e
na pandemia, tendo que ficar toda a família em casa, o dia todo, a
situação pode ser barulhenta, bagunçada. Consideremos os casos em
que existe gente doente, de quarentena, requerendo cuidados
especiais. Não queremos pensar pelo pior, mas é preciso certa
flexibilidade e sensibilidade para se perceber como é a situação
de cada estudante ou professor(a), e não esperar que tudo seja como
antes. Porque não é.
Algumas
coisas ao serem diferentes, poderiam ser melhores? Certamente. Mas
como seria isso? Queremos mostrar a seguir, que esse tempo de
dificuldades e de anormalidade pode ser um tempo de avanço e
melhoria pedagógica. Vejamos...
Existe
uma ideia pela qual as pessoas tratam os dias letivos, ou dias de
aula, como se fossem uma unidade de medida de aprendizagem. Por esse
raciocínio, muitas vezes, educadores, estudantes e familiares ficam
contando os dias efetivados, e marcando pedaços de livro que já
foram "dados", como se a escola fosse uma fábrica que vai
depositando etapas de conhecimento nas cabeças de estudantes. Existe
uma crítica que já não é nova, de Paulo Freire (1987), que afirma
que conhecimento se constrói por meio de relações entre docentes,
estudantes, e objeto de estudo, e não é algo que se possa
transferir. Não basta estudantes repetirem a lição. Muita gente se
prepara para responder questões de prova e depois esquece tudo, em
seguida. Não é esse desenvolvimento ou conhecimento que desejamos.
Queremos que a aprendizagem seja aproveitada para compreender e
transformar a vida e a sociedade. Assim, acreditamos que uma
aprendizagem significativa e libertadora, aquela em que cada
estudante cria seus significados, conforme interage com os objetos de
estudo, com colegas em estudo, e com docentes, e juntos fazem uma
crítica social, estabelecendo relações com os contextos em que
vivem, com a sociedade, e as possibilidades de mudança social, essa
aprendizagem não é algo que flui no tempo como se fosse uma linha
de produção industrial. Ao contrário, vem dos diálogos, dos
questionamentos, das observações, e das trocas de impressões e
olhares num ambiente coletivo da turma. Requer o tempo e a
sensibilidade da vivência e da convivência. Essa aprendizagem passa
por conflitos, problematizações, reflexões, contrariedades,
discussões... Entendemos que, a partir de certas conversas, mais
lentamente, ou mais acentuadamente, a escola pode gerar aprendizagem
libertadora e significativa mesmo durante a pandemia, com docentes e
estudantes em suas casas.
Quem
sabe, pelo motivo de que não se pode exigir o cumprimento de cada
minuto de aula, e cada aula do horário, uma em seguida à outra,
quem sabe isso nos liberta a todos para sermos mais capazes de
estabelecer boas relações de trocas na turma, entre docente e
discentes, entre estudantes e colegas de turma, entre objetos de
estudo e contextos de vida. Apostamos que isso é possível. Essa
condição de excepcionalidade pode ser frutífera. Depende das
pessoas, do tom da conversa, de nossa escuta. Depende de nosso jeito
com as situações, nossa paciência, sensibilidade. Que tal
aproveitar a pandemia para darmos um passo em direção contrária ao produtivismo?
Podemos
nos permitir trabalhar com maior heterogeneidade, e menor
padronização. Podemos aceitar que cada turma, e cada escola, e
situação, tem suas características; e vale a pena perceber e
respeitar a realidade existente. Mesmo dentro de cada turma, nas
relações pedagógicas, sabemos que existe heterogeneidade de
aprendizagens e podemos bem conviver com isso, desde que se consiga
cuidar para que todas as pessoas consigam se envolver nos processos,
que sintam-se desafiadas e motivadas. E nesse caso, estarão
aprendendo.
Enquanto
a pandemia continua, e as pessoas precisam ficar em casa, ao menos as
que têm condições de ficar, se existe um distanciamento físico,
os laços sociais passam a ser mais necessários ainda, e eles são
cultivados pelos contatos mediados pela internet. O contato social
pode ser por meio de conversas por telefone, com ou sem imagem, por
troca de mensagens, envio de comentários, fotos, imagens e tantos
objetos digitais disponíveis hoje. Não se pode dizer isolamento
social de uma pessoa que conversa e troca informações e objetos
culturais, digitalmente, com 10, com 20 pessoas em um dia. Os laços
sociais são construídos e reconstruídos em outra relação com o
tempo, de outras formas, mas são importantes. Em tempos de ficar em
casa o convívio social é mais necessário que antes. E a escola tem
sido e pode continuar sendo um dos principais locais de convívio
social de crianças e adolescentes, ou jovens e adultos. O convívio
social pode também estar, em certos momentos, direcionado para a
construção de conhecimentos. As conversas não precisam ser somente
sobre trivialidades, mas podem ser agradáveis, atraentes, e ligadas
a conteúdos e objetivos educacionais. Não pensemos na cobrança, ou
obrigação, mas agora, que a situação está difícil, podemos
fazer com mais sensibilidade e cuidado. Sem pressa.
Para
avançar nessa pedagogia libertadora, em meio à pandemia, é preciso
o trato democrático. Isso envolverá a escuta de todas as pessoas,
será necessária a paciência para a construção de consensos, será
preciso um ambiente em que sejam acolhidas as discordâncias. Esses
cuidados sempre são importantes, mas agora, que não podemos sair de
casa, e que cada pessoa está meio isolada, esse cuidado precisa ser
de verdade. É preciso criar um ambiente de conversa coletiva que vá
gerando a confiança em todas as participantes, que vão sentindo-se
à vontade para falar, e pacientes e respeitosas para escutar. Isso
será tarefa da docência, que precisa ir cuidando para que esse
clima de confiança se estabeleça. Isso toma tempo. Não é perda de
tempo escutar algo que não seja tão objetivo, ou deixar falar (ou
escrever) mesmo quem não é tão inteligente ou que tenha estudado
bastante a lição. É um cuidado com a formação do coletivo, para
que cada estudante sinta-se participante.
E a
divisão de aulas em disciplinas, como fica? Antes da pandemia, as
disciplinas, em geral, eram sinônimo de isolamento. Mas agora não
podemos suportar mais isolamento. Então, é preciso usar esforço e
tempo entre docentes para ter planejamentos compartilhados, e quem
sabe construídos coletivamente. É hora de se praticar a multi, a
inter e a transdisciplinaridade.
Se
tivermos coragem de fazer a educação com cada pessoa em sua casa
com flexibilidade e sensibilidade, no tempo e do jeito que for
possível, sem deixar nenhuma pessoa de fora, estaremos fazendo cada
vez menos padronização. Muitos objetos culturais podem servir de
apoio a essa educação; e eles são necessários e bem vindos. Podem
ser livros com textos e imagens coloridas, de vários tipos. E esses
podem estar disponíveis pela internet. Livros didáticos podem ser
usados, desde que sejam uma forma de apoio ao estudo, e que não
sejam usados para ditar o andamento das aulas, nem o fluxo de
"ensino". Podemos usar poesias, notícias em forma de
reportagens atuais e antigas, temos ainda música, áudio (como
noticiário e programas de rádio ou podcast) e os vídeos que também
comportam muitos formatos possíveis. Dessa forma, podemos dispor de
um banco de materiais dos quais lançaremos mão para as articulações
de aprendizagem e estudo.
Resumindo
e finalizando:
Enfim, o regime de aulas em casa na pandemia pode não ser uma tentativa de continuar a escola burocrática, padronizada e impessoal, mas sim uma abertura para uma relação pedagógica melhor, uma relação de estudo com mais dialogicidade (FREIRE, 1987). Não queremos ninguém de fora, e podemos ampliar o diálogo e a flexibilização. Isso irá requerer uma atenção cuidadosa, que não é sinônimo de licenciosidade. Deixar cada estudante fazer o que quiser e como quiser não levará a resultados positivos. Cada escola precisa se organizar a partir do olhar para sua situação. Temos que estabelecer conversas entre educadores(as) para o planejamento coletivo, mesmo que seja em casa, e pela internet. Estudantes e familiares devem ser chamados e ouvidos nessa construção que será um novo projeto político pedagógico. As condições de comunicação de cada estudante precisam ser experimentadas e apoiadas. O convívio social é importante. Devemos respeitar e levar em consideração as falas de todas as pessoas. Mais do que nunca precisamos estar juntos. Os planejamentos de aula e as ações por disciplina precisam ser compartilhados para que se possa construir um conjunto e um coletivo de ação pedagógica. Na continuidade e desenvolvimento das aulas e atividades não podemos trabalhar com a cobrança e a pressão sobre estudantes, mas observando o que acontece e dialogando abertamente, colocando estudante na posição de autor de seu caminho de aprendizagem.
Se ficarmos parados desaquecemos, tanto educadores(as) como estudantes e isso dificultará o retorno, seja quando for. Fazer de conta que tudo está como antes não é uma realidade possível, é um desastre, uma deseducação pois estaremos mostrando a falta de sensibilidade e de diálogo. Vamos então aproveitar para dar um passinho em direção à gestão democrática e participativa da escola, da aula, para melhorar nossa capacidade de escuta e diálogo, e nos livrar, ainda que seja só um pouco, da pressão produtivista, da padronização, aproveitar para nos permitir entrar em relações de aprendizagem em que se possa saborear antes de engolir. Enfim, o regime de aulas em casa na pandemia pode não ser uma tentativa de continuar a escola burocrática, padronizada e impessoal, mas sim uma abertura para uma relação pedagógica melhor, uma relação de estudo com mais dialogicidade (FREIRE, 1987). Não queremos ninguém de fora, e podemos ampliar o diálogo e a flexibilização. Isso irá requerer uma atenção cuidadosa, que não é sinônimo de licenciosidade. Deixar cada estudante fazer o que quiser e como quiser não levará a resultados positivos. Cada escola precisa se organizar a partir do olhar para sua situação. Temos que estabelecer conversas entre educadores(as) para o planejamento coletivo, mesmo que seja em casa, e pela internet. Estudantes e familiares devem ser chamados e ouvidos nessa construção que será um novo projeto político pedagógico. As condições de comunicação de cada estudante precisam ser experimentadas e apoiadas. O convívio social é importante. Devemos respeitar e levar em consideração as falas de todas as pessoas. Mais do que nunca precisamos estar juntos. Os planejamentos de aula e as ações por disciplina precisam ser compartilhados para que se possa construir um conjunto e um coletivo de ação pedagógica. Na continuidade e desenvolvimento das aulas e atividades não podemos trabalhar com a cobrança e a pressão sobre estudantes, mas observando o que acontece e dialogando abertamente, colocando estudante na posição de autor de seu caminho de aprendizagem.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
Nenhum comentário:
Postar um comentário