quinta-feira, 28 de maio de 2020

EDUCAÇÃO  NA  PANDEMIA ? 
Freire mais do que nunca.

Celso Vallin

(prof. da Universidade Federal de Lavras. Dep. de Educação. maio de 2020)
Em 2020 a pandemia chegou e foi rápida. Difícil saber quando a situação poderia voltar a ser como antes. Isso leva a reflexões sobre o que fazer nas escolas, e na educação, porque torna necessário ficar em casa, meses seguidos.
Alguns defendem ficar sem aulas mesmo, porque nas salas de aula as pessoas ficam muito próximas e por muito tempo. E nos intervalos da escola, as aglomerações de pessoas se tornam mais intensas ainda. Além do que, qual o problema de se atrasar em 3 ou 6 meses a formação de uma pessoa? Afinal, entre educação infantil e superior são pelo menos 18 anos de escola.
Outros defendem que não se perca tempo. No fundo ainda impera a ideia força de que "tempo é dinheiro". Nesse caso os argumentos são vários: que o fim da pandemia pode demorar; que estudantes não podem se atrasar nos estudos; que educadores(as) estão recebendo salários e precisam trazer resultados; que pela internet tudo pode ser resolvido; e por ai vai.
Como seria uma posição intermediária, entre esses dois extremos? Vejamos as condições. A internet, não está disponível em todo lugar, mas já funciona em muitos. Professores(as), a maioria não têm preparo anterior para trabalhar a distância, mas usa celulares e computadores e poderia ajudar de alguma forma, a partir de suas casas. Crianças e adolescentes, estando em casa, têm muito tempo disponível e, se dedicarem aos estudos poderia ser bom. A educação e todo aparato escolar poderia estar em funcionamento, mesmo que não fosse para fazer tudo como de costume, mas experimentando novas possibilidades.
Seria possível aproveitar esse novo regime para gestar alguma melhoria? Ou fazer algo seria só para tampar buraco? Entendo que não se pode esperar que tudo ande como se nada de diferente estivesse acontecendo. Até porque, é diferente.
Não podemos assumir que temos a internet disponível para toda gente porque não temos. Em áreas rurais, em vários locais não se consegue nem sinal de telefone. Algumas famílias só têm equipamentos antigos, com pouca capacidade e lentos. Ou não têm. Outras compartilham equipamentos entre várias pessoas na família (celular e computador). Embora existam contratações de internet com grande fluxo de dados, muita gente não tem dinheiro para isso e usa um acesso lento e instável. E existem pessoas que estão ganhando pouco e darão prioridade para a comida, a conta d'água, e não a internet. Enfim, todas as soluções dependem do uso da internet. É preciso lembrar dos que têm dificuldades, e assim trabalhar com flexibilidade de tempo, demandar coisas que possam funcionar com aparatos simples, e ir descobrindo o que é possível fazer em cada situação. Não se deve exigir muito, porque estaríamos excluindo as pessoas que já têm outros problemas.
Devemos considerar ainda o fato de que muita gente tem moradia precária, e na pandemia, tendo que ficar toda a família em casa, o dia todo, a situação pode ser barulhenta, bagunçada. Consideremos os casos em que existe gente doente, de quarentena, requerendo cuidados especiais. Não queremos pensar pelo pior, mas é preciso certa flexibilidade e sensibilidade para se perceber como é a situação de cada estudante ou professor(a), e não esperar que tudo seja como antes. Porque não é.
Algumas coisas ao serem diferentes, poderiam ser melhores? Certamente. Mas como seria isso? Queremos mostrar a seguir, que esse tempo de dificuldades e de anormalidade pode ser um tempo de avanço e melhoria pedagógica. Vejamos...
Existe uma ideia pela qual as pessoas tratam os dias letivos, ou dias de aula, como se fossem uma unidade de medida de aprendizagem. Por esse raciocínio, muitas vezes, educadores, estudantes e familiares ficam contando os dias efetivados, e marcando pedaços de livro que já foram "dados", como se a escola fosse uma fábrica que vai depositando etapas de conhecimento nas cabeças de estudantes. Existe uma crítica que já não é nova, de Paulo Freire (1987), que afirma que conhecimento se constrói por meio de relações entre docentes, estudantes, e objeto de estudo, e não é algo que se possa transferir. Não basta estudantes repetirem a lição. Muita gente se prepara para responder questões de prova e depois esquece tudo, em seguida. Não é esse desenvolvimento ou conhecimento que desejamos. Queremos que a aprendizagem seja aproveitada para compreender e transformar a vida e a sociedade. Assim, acreditamos que uma aprendizagem significativa e libertadora, aquela em que cada estudante cria seus significados, conforme interage com os objetos de estudo, com colegas em estudo, e com docentes, e juntos fazem uma crítica social, estabelecendo relações com os contextos em que vivem, com a sociedade, e as possibilidades de mudança social, essa aprendizagem não é algo que flui no tempo como se fosse uma linha de produção industrial. Ao contrário, vem dos diálogos, dos questionamentos, das observações, e das trocas de impressões e olhares num ambiente coletivo da turma. Requer o tempo e a sensibilidade da vivência e da convivência. Essa aprendizagem passa por conflitos, problematizações, reflexões, contrariedades, discussões... Entendemos que, a partir de certas conversas, mais lentamente, ou mais acentuadamente, a escola pode gerar aprendizagem libertadora e significativa mesmo durante a pandemia, com docentes e estudantes em suas casas.
Quem sabe, pelo motivo de que não se pode exigir o cumprimento de cada minuto de aula, e cada aula do horário, uma em seguida à outra, quem sabe isso nos liberta a todos para sermos mais capazes de estabelecer boas relações de trocas na turma, entre docente e discentes, entre estudantes e colegas de turma, entre objetos de estudo e contextos de vida. Apostamos que isso é possível. Essa condição de excepcionalidade pode ser frutífera. Depende das pessoas, do tom da conversa, de nossa escuta. Depende de nosso jeito com as situações, nossa paciência, sensibilidade. Que tal aproveitar a pandemia para darmos um passo em direção contrária ao produtivismo?
Podemos nos permitir trabalhar com maior heterogeneidade, e menor padronização. Podemos aceitar que cada turma, e cada escola, e situação, tem suas características; e vale a pena perceber e respeitar a realidade existente. Mesmo dentro de cada turma, nas relações pedagógicas, sabemos que existe heterogeneidade de aprendizagens e podemos bem conviver com isso, desde que se consiga cuidar para que todas as pessoas consigam se envolver nos processos, que sintam-se desafiadas e motivadas. E nesse caso, estarão aprendendo.
Enquanto a pandemia continua, e as pessoas precisam ficar em casa, ao menos as que têm condições de ficar, se existe um distanciamento físico, os laços sociais passam a ser mais necessários ainda, e eles são cultivados pelos contatos mediados pela internet. O contato social pode ser por meio de conversas por telefone, com ou sem imagem, por troca de mensagens, envio de comentários, fotos, imagens e tantos objetos digitais disponíveis hoje. Não se pode dizer isolamento social de uma pessoa que conversa e troca informações e objetos culturais, digitalmente, com 10, com 20 pessoas em um dia. Os laços sociais são construídos e reconstruídos em outra relação com o tempo, de outras formas, mas são importantes. Em tempos de ficar em casa o convívio social é mais necessário que antes. E a escola tem sido e pode continuar sendo um dos principais locais de convívio social de crianças e adolescentes, ou jovens e adultos. O convívio social pode também estar, em certos momentos, direcionado para a construção de conhecimentos. As conversas não precisam ser somente sobre trivialidades, mas podem ser agradáveis, atraentes, e ligadas a conteúdos e objetivos educacionais. Não pensemos na cobrança, ou obrigação, mas agora, que a situação está difícil, podemos fazer com mais sensibilidade e cuidado. Sem pressa.
Para avançar nessa pedagogia libertadora, em meio à pandemia, é preciso o trato democrático. Isso envolverá a escuta de todas as pessoas, será necessária a paciência para a construção de consensos, será preciso um ambiente em que sejam acolhidas as discordâncias. Esses cuidados sempre são importantes, mas agora, que não podemos sair de casa, e que cada pessoa está meio isolada, esse cuidado precisa ser de verdade. É preciso criar um ambiente de conversa coletiva que vá gerando a confiança em todas as participantes, que vão sentindo-se à vontade para falar, e pacientes e respeitosas para escutar. Isso será tarefa da docência, que precisa ir cuidando para que esse clima de confiança se estabeleça. Isso toma tempo. Não é perda de tempo escutar algo que não seja tão objetivo, ou deixar falar (ou escrever) mesmo quem não é tão inteligente ou que tenha estudado bastante a lição. É um cuidado com a formação do coletivo, para que cada estudante sinta-se participante.
E a divisão de aulas em disciplinas, como fica? Antes da pandemia, as disciplinas, em geral, eram sinônimo de isolamento. Mas agora não podemos suportar mais isolamento. Então, é preciso usar esforço e tempo entre docentes para ter planejamentos compartilhados, e quem sabe construídos coletivamente. É hora de se praticar a multi, a inter e a transdisciplinaridade.
Se tivermos coragem de fazer a educação com cada pessoa em sua casa com flexibilidade e sensibilidade, no tempo e do jeito que for possível, sem deixar nenhuma pessoa de fora, estaremos fazendo cada vez menos padronização. Muitos objetos culturais podem servir de apoio a essa educação; e eles são necessários e bem vindos. Podem ser livros com textos e imagens coloridas, de vários tipos. E esses podem estar disponíveis pela internet. Livros didáticos podem ser usados, desde que sejam uma forma de apoio ao estudo, e que não sejam usados para ditar o andamento das aulas, nem o fluxo de "ensino". Podemos usar poesias, notícias em forma de reportagens atuais e antigas, temos ainda música, áudio (como noticiário e programas de rádio ou podcast) e os vídeos que também comportam muitos formatos possíveis. Dessa forma, podemos dispor de um banco de materiais dos quais lançaremos mão para as articulações de aprendizagem e estudo.
Resumindo e finalizando:
          Enfim, o regime de aulas em casa na pandemia pode não ser uma tentativa de continuar a escola burocrática, padronizada e impessoal, mas sim uma abertura para uma relação pedagógica melhor, uma relação de estudo com mais dialogicidade (FREIRE, 1987). Não queremos ninguém de fora, e podemos ampliar o diálogo e a flexibilização. Isso irá requerer uma atenção cuidadosa, que não é sinônimo de licenciosidade. Deixar cada estudante fazer o que quiser e como quiser não levará a resultados positivos. Cada escola precisa se organizar a partir do olhar para sua situação. Temos que estabelecer conversas entre educadores(as) para o planejamento coletivo, mesmo que seja em casa, e pela internet. Estudantes e familiares devem ser chamados e ouvidos nessa construção que será um novo projeto político pedagógico. As condições de comunicação de cada estudante precisam ser experimentadas e apoiadas. O convívio social é importante. Devemos respeitar e levar em consideração as falas de todas as pessoas. Mais do que nunca precisamos estar juntos. Os planejamentos de aula e as ações por disciplina precisam ser compartilhados para que se possa construir um conjunto e um coletivo de ação pedagógica. Na continuidade e desenvolvimento das aulas e atividades não podemos trabalhar com a cobrança e a pressão sobre estudantes, mas observando o que acontece e dialogando abertamente, colocando estudante na posição de autor de seu caminho de aprendizagem. 
          Se ficarmos parados desaquecemos, tanto educadores(as) como estudantes e isso dificultará o retorno, seja quando for. Fazer de conta que tudo está como antes não é uma realidade possível, é um desastre, uma deseducação pois estaremos mostrando a falta de sensibilidade e de diálogo. Vamos então aproveitar para dar um passinho em direção à gestão democrática e participativa da escola, da aula, para melhorar nossa capacidade de escuta e diálogo, e nos livrar, ainda que seja só um pouco, da pressão produtivista, da padronização, aproveitar para nos permitir entrar em relações de aprendizagem em que se possa saborear antes de engolir. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido, 17a Edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. 

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