quarta-feira, 6 de novembro de 2013

VALLIN, 2005 - artigo - O eterno problema da FALTA de tempo
(São 8 páginas - por isso é melhor imprimir e ler em papel!)

O eterno problema da FALTA de tempo

Celso Vallin, 2005

-Olá como vai.
-Eu vou indo correndo pegar meu lugar no futuro
-Me perdoe a pressa.
-É a alma dos nossos negócios.
-O sinal...
-Eu espero você.
-Vai abrir...
Paulinho da Viola fez música com a angústia da falta de tempo, entre dois amigos que se encontravam num cruzamento de trânsito, enquanto viviam aqueles segundos de espera do semáforo abrir.
Salvador Dali pintou relógios que escorrem eternizando suas impressões sobre o tempo.
Arroyo estuda a escola brasileira e a vida do educador e conclui: “o tempo aparece cada vez com maior destaque como uma categoria que exige nossa atenção profissional” (Arroyo, 2004, p.23).
Mesmo quem vive a realidade do chamado ‘primeiro mundo’ aponta a falta de tempo como um empecilho aos avanços da escola.
Este é um tema de importância, a se levar em conta que, cada vez mais, temos exemplos, a partir dos esforços de reforma de todo o mundo, de que a falta de tempo é o maior impedimento à aprendizagem dos docentes e à melhoria da escola. (Hernández, 2004, p. 13)
Hoje é comum que as pessoas sintam falta de tempo e pode-se discutir como organizar melhor o uso do tempo. A idéia é que a pessoa organize melhor sua vida, de maneira a “ganhar tempo”. Mas o que seria organizar melhor o nosso tempo?
Num primeiro olhar sobre o eterno problema da falta de tempo, nossos impulsos e nossa racionalidade nos indicam que devemos aproveitar melhor os minutos, fazer nossas atividades de forma mais rápida e objetiva, e talvez aumentar o tempo dedicado às atividades “produtivas”. Não é difícil encontrar manuais, dicas e até cursos que exploram essa linha de pensamento, recomendando até o uso de planilha, no computador ou no papel mesmo, de modo a racionalizar o uso do tempo. Muitas vezes dedicamos muito tempo a questões que consideramos de pouca importância, e acabamos sem tempo para questões essenciais. Assim, cuidar da maneira como usamos nosso tempo pode nos trazer alguns benefícios importantes.
Mas é preciso aprender a cumprir os compromissos de tempo mas também se manter livre, sem se afogar nas demandas de urgência do cotidiano. É preciso aprender a ser dono de nosso próprio tempo.
Observações mais filosóficas nos remetem a outros pensamentos.
[...] o aprendiz é como um viajante que se detém o tempo que for necessário nos lugares de seu interesse, que desfruta do encontro inesperado e que se sente atraído mais pela intensidade da experiência do que pela quantidade de postais que acumula. (Hernández, 2004, p. 13)
Será que o tempo existe mesmo? Não seria só uma criação cultural? Tudo não passaria de uma questão de estabelecimento de prioridades e significados?
Muitos esquemas de pensamento, de trabalho, e de organização na escola são emprestados do mundo dos negócios. Alguns deles vêm para ajudar, mas outros podem distorcer as verdadeiras funções da escola.
Algumas pessoas agem de forma semelhante à de um ‘patrão’, mesmo na escola. Em geral são diretores, coordenadores, supervisores, dirigentes e até ‘professores diante de seus alunos’. Outros acabam ficando em posição semelhante à de ‘empregados’. Também na escola são vividas relações semelhantes às de patrão e empregado. Mas, como na sociedade em geral, muitos estão como ‘patrão’ numa situação e ao mesmo tempo como ‘empregado’ em outra. Algumas vezes a pessoa que está no papel de patrão age de modo a “tirar o suco” de outras pessoas com quem tem algum vínculo no trabalho, aqueles que sente como “seus” empregados, ou seja, procura fazer com que os outros rendam o máximo. Essa relação entre as pessoas, quando se sentem na obrigação de se comportar como patrão e empregados, essa assunção de papéis, gera um clima de pressão e de incomodação. Tira a paz e alegria das pessoas. Elas acabam sentindo-se exploradas, ou sempre em dívida com o sistema. Existe ai também uma auto-imposição por metas de “produtividade”, e isso acontece até na escola. Esse é um dos fatores que cria a sensação de falta de tempo. Mesmo pessoas que estão em cargos de gestão sentem-se cobradas e sofrem dessa “falta de tempo” real ou psicológica. Sentem que deveriam fazer mais!
As relações trabalhistas vêm sofrendo mudanças e temos cada vez mais pessoas ‘contratadas para prestar serviços’ e não como empregados (de carteira assinada). Esse é outro fator de pressão e de instabilidade. Ajuda as instituições a aproveitarem o máximo das pessoas, e colabora para que elas sintam-se em dívida, ou com falta de tempo. Mais pessoas trabalham por contrato, e as relações de trabalho são cada vez mais temporárias e instáveis. Por receio de ficar sem trabalho, ou sem dinheiro, as pessoas acabam aceitando mais responsabilidades do que gostariam, ou poderiam, e ficam sobrecarregadas. Por outro lado, quando limitam adequadamente o volume de trabalho contratado, correm o risco de ficar alguns períodos sem trabalho ou com pouco trabalho, o que também gera estresse.
As pessoas estressadas costumam se renovar nas férias, mas quem presta serviços por contratos (escritos ou verbais) não costuma contratar períodos de férias. Mesmo quando estão sem contratos, ainda que sejam por pequenos períodos (um ou dois meses), não se sentem em paz para viver como se estivessem em férias. Ocupam o tempo e a mente buscando novos contratos e vivem a insegurança financeira.
Por serem mal remunerados, ou pelo receio de ficar com pouco trabalho (aulas ou outros trabalhos) há, muitos profissionais de educação que assumem mais responsabilidades do que gostariam (aulas, atribuições de gestão, e outras), às vezes em mais de um endereço, e acabam sem tempo para os necessários trabalhos de planejamento, reflexão e estudo, nos planos pessoal e coletivo. Essa situação, aliada às dificuldades naturais do magistério também gera estresse.
Empregados ou prestadores de serviços, ambos acabam na mesma situação. Sentem-se sempre em dívida.
Quando se trabalha a serviço de outros seres humanos, cercado por expectativas difusas, culpa e frustração tornam-se parte do serviço. Eis as palavras de um dos professores que participou do estudo sobre o tempo de preparação: “Ensinar é uma profissão que, quando você vai para casa, sempre leva material em que pensar. Você pensa ‘deveria estar fazendo tal coisa’. Sinto-me culpado por sentar-me durante meia hora.” Estas expectativas tão absurdamente elevadas, muitas delas auto-impostas [...] reforçam o individualismo. (Fullan e Hargreaves, 2000, p. 61)
O estresse não é sempre ruim. Um pouco de estresse, pode ajudar a superar limitações pessoais, e até tirar as pessoas do marasmo e desânimo das rotinas. Mas as pessoas precisam saber se cuidar e estabelecer limites entre o estresse leve e produtivo, daquele que destrói vidas: a do estressado e a de quem convive com ele. A escola não é uma instituição que visa o lucro e a competitividade, e nela o melhor a ser feito nem sempre é resultado de uma ponderação de ordem simplesmente racional. Deve ser um ambiente com espaço e compreensão para o erro e acerto, para diferentes ritmos, investigações e experimentações – tudo isso vai contra algumas idéias empresariais de racionalização do tempo. Nos ambientes de aprendizagem deve haver paz nas relações de modo a permitir perdas, ineficiências e reflexões pessoais e coletivas. Na escola pode-se lidar com situações de algum estresse e cobrança, mas sempre de olho no processo de aprendizagem de cada um e do coletivo.
Tanto em relações de emprego, como em relações de prestação de serviços, a competitividade favorece que uns desqualifiquem o trabalho dos outros. Muitas vezes isso acontece de forma velada. Esses comportamentos desfavorecem a articulação de trabalhos cooperativos e a formação de equipes e de coletivos. Se essa falta de companheirismo e solidariedade no trabalho já é ruim na empresa, na escola é mais grave.
Tentar resolver o problema da falta de tempo imitando soluções empresariais pode estar reforçando os esquemas rígidos em que a escola está tradicionalmente estruturada.
Enfrentar o tempo escolar requer não esquecer que aqueles que pensaram o ‘dever ser’ da escola no início do século XX optaram pela carta da racionalização, entendida como ‘a organização da vida por meio da divisão e da coordenação das atividades fundamentada em um estudo exato das relações dos homens entre si, com suas ferramentas e seu ambiente, objetivando alcançar maior eficácia e produtividade’. (Hernández, 2004, p. 13)
Não buscamos desenvolver a autonomia dos educandos? Desenvolvimento de autonomia requer oportunidades de experimentação, com possibilidade para acertos e erros. A otimização do tempo não estaria contribuindo para um modo de agir dentro de critérios e padrões rígidos demais para um ambiente de escola?
É a lógica “transmissiva”, que organiza todos os tempos e os espaços tanto do professor quanto do aluno, em torno dos “conteúdos” a serem transmitidos. Uma suposta lógica dos conteúdos a serem transmitidos constitui o eixo vertebrador da organização dos graus, séries, disciplinas, grades, avaliações, recuperações, aprovações ou reprovações. (Arroyo, 2004, p. 193)
Conseguimos tempos de formação e planejamento, mas como libertá-los dos tempos de aula, da rigidez curricular, dos rituais das provas...? Uma professora destacou que as primeiras vítimas dessa máquina do tempo ou dessa lógica temporal férrea são as professoras e os professores. Os depoimentos foram mostrando como estamos tão acostumados com essa lógica temporal instituída que nem a questionamos e até a defendemos como se fizesse parte de nosso ritmo temporal docente e humano. Não percebemos que muitos dos problemas de nosso trabalho têm sua origem na lógica temporal a que está submetida nossa docência. Se nossos tempos fossem organizados de outra maneira não seríamos mais livres? (Arroyo, 2004, p. 195)
Escola cidadã é aquela que contribui para que educandos e educadores encontrem e desenvolvam seu potencial humano. O ambiente ajuda as pessoas a serem mais gente. Ajuda a aprender a conviver consigo mesmo, com o semelhante e com a natureza. A otimização dos tempos não estaria acorrentando as pessoas aos processos já estabelecidos? Não estaria dificultando o jeito humano de ser, criativo, crítico, autoral?
Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. (Freire, 1987, p. 70, grifos do autor)
Sendo assim, o uso do tempo não deveria estar sendo discutido e flexibilizado conforme as necessidades locais e cotidianas? Como se deve lidar com as estruturas de convivência e de ensino-aprendizagem? Como lidar com o tempo para permitir o trabalho com projetos pessoais e grupais na escola? Para Hernández (2004, p. 13), para desenvolver projetos na escola é preciso superar a dicotomia entre o tempo prescrito e os tempos escolhidos.
Falta de tempo gera pressa, falta de paciência, e falta de gentileza. Essa falta de gentileza, quase involuntária, meio doentia, pode ser vista mais facilmente no trânsito das grandes cidades, mas se expressa também na maneira como o professor trata seus conteúdos e seus alunos, às vezes involuntariamente. O mesmo acontece nas reuniões pedagógicas e em outras relações dentro da escola. Falta tempo, falta paciência, acaba faltando alegria e humanidade.
A ideologia produtivista e competitiva leva a escola para a aula transmissiva, o professor que cobra do aluno, o aluno e pais que querem um professor objetivo e servil, e todos acabam tendendo a relações tecnicistas (desumanizadas) e com poucas oportunidades para cada um descobrir-se e desenvolver-se como criativo, sensível, solidário.
Assmann (1998) propõe que se pense em dois tempos diferentes: o kairos (kairológico) e o krono (cronológico).
O tempo cronológico de que fala é aquele do relógio, cada vez mais presente na vida das pessoas, rígido, ditador. Assmann fala da obsessão pelo tempo exato e a racionalidade instrumental (1998, p. 207).
Suspeito que hoje, mais que o relógio digital, é o relógio atômico que continua provocando a secreta volúpia de estar chegando perto do pleno domínio do tempo. O domínio do tempo sempre esteve ligado de alguma forma, com o loteamento da eternidade [...] Creio que nossa reconciliação com os avanços científico-tecnológicos deve acontecer sem susto, num saboreamento existencial profundo, mas também sem cegueira. O desejo de exatidão total na medição do tempo não estará camuflando uma soberba ilimitada da razão instrumental, que sonha com um controle onipotente de tudo, alcançando até o coração da matéria? (Assmann, 1998, p. 208)
Saboreamento existencial! O tempo kairológico é aquele mais ligado às nossas vontades, à maneira como saboreamos cada momento.
Cada um de nós certamente pode identificar situações que tomaram longos espaços de tempo cronológico de suas vidas, mas que em sua recordação ocupam apenas uma lembrança vaga como se fossem poucos segundos, porque pouco valeram. Por outro lado, algumas vivências que aconteceram em curtos tempos cronológicos são lembradas em detalhes, sob muitos aspectos, cheias de nuances e sentimentos. Foram situações intensamente vividas em que o tempo kairológico foi muito maior do que o cronológico. Também no presente essas diferenças acontecem.
Quando experimentamos dor ou prazer, os instantes se tornam subjetivamente assimétricos. Na dor o instante é um sufoco interminável, na espera ele parece estagnar-se e no prazer ele dispara e se esvai. São muitas as formas de percepção que comprovam que o tempo, para nós, está de alguma forma supeditado [subordinado] àquilo que experimentamos. (Assmann, 1998, p. 216, 217)
Assmann fala de relação entre o controle exato e rígido do tempo e o poder e a ambição das pessoas e organizações. Relaciona as idéias empresariais de “just-in-time” e “qualidade total”, com o tempo.
A produção e circulação se propõe chegar à sincronização cronológica entre oferta e procura (just-in-time, estoque zero). Nisso tudo emerge uma nova noção do tempo, impregnando aos poucos todo o sistema. Um novo conceito de tempo, e não só do cronológico, já faz parte da concepção de qualidade. Qualidade total significa também compactação temporal da eficiência. (Assmann, 1998, p. 209)
Quando se fala em interdisciplinaridade o jeito de olhar o tempo é importante. Interdisciplinaridade implica em integração das várias áreas de conhecimento, no trabalho cooperativo entre professores de diferentes disciplinas. Interdisciplinaridade requer a flexibilidade dos papéis, tempos, enturmações e arranjos. Requer entrosamento e desprendimento de interesses pessoais em função do coletivo. As idéias de interdisciplinaridade de Fazenda (1985) já apontavam para a necessidade de se ter um tempo “folgado” nas relações escolares, ao contrário da ideologia produtivista.
Numa sala de aula interdisciplinar existe sempre um ritual de encontro no início, no meio e no fim. [...] Todos se percebem e gradativamente se tornam parceiros. [...] Difere da comum desde a organização do espaço arquitetônico à organização do tempo. [...] Predomina [a premissa] do respeito ao modo de ser de cada um, ao caminho que cada um empreende em busca de sua autonomia – portanto [...] decorre mais do encontro entre indivíduos do que entre disciplinas. (Fazenda, 1985, p. 86)
[...] o projeto interdisciplinar pressupõe a presença de projetos pessoais de vida; o processo de desvelamento de um processo pessoal de vida é lento, exige uma espera adequada. (Fazenda, 1985, p. 87)
As aulas e projetos de que fala pressupõem parcerias, diálogos de idas e vindas entre teorias e práticas, subjetividade com objetividade, a ousadia da busca, e uma bibliografia “sempre provisória, nunca definitiva”. (Fazenda, 1985, p. 87)
Para Garcia (2000):
Exercer a interdisciplinaridade é ‘tecer’ um ambiente interativo, onde os participantes estão ‘entrelaçados’ pelos saberes que são capazes de produzir coletivamente. [...] Mas a complexa tarefa de ‘tecer’ kairos e assim engendrar uma oportunidade, requer uma visão de totalidade [...] é uma arte intuitiva, onde se exerce mais sensibilidade do que algum tipo de racionalidade. (GARCIA, 2000, p. 108)
Tecer kairos é uma arte intuitiva.
Há algumas décadas até os filmes passaram a ser mais rápidos e frenéticos. Filmes para crianças, como os desenhos de Walt Disney, passaram a ter uma dinâmica em que muitas coisas acontecem ao mesmo tempo e tudo se passa muito rapidamente. A indústria cinematográfica faz filmes com dinâmica mais rápida para agradar o público, e o público vai na onda. Mesmo nas novelas brasileiras as coisas começaram a acontecer de forma mais rápida. Chegamos num ponto em que não tínhamos mais programas para assistir que nos permitissem descansar ou apreciá-los de forma descontraída. Essas coisas mostram um movimento da sociedade, que pode ser sentido na escola. Professores, gestores educacionais, alunos e pais foram se pressionando para ter mais coisas em menos tempo e para que cada instante pudesse ser mais interessante. Desejava-se que o instante seguinte trouxesse sempre mais uma novidade. Mas precisamos reencontrar um ponto de equilíbrio. Não queremos voltar ao passado, nem ser saudosistas. Mas é preciso curar esse sentimento de falta de tempo que muitos sentem e voltar a viver em paz, mesmo que seja com períodos de leve estresse.
[...] a mídia se interessa por espectadores, enquanto que a escola deve interessar-se em sujeitos ativos do conhecimento. É por isso que um bom aproveitamento do tempo escolar exige a transformação dele em tempo pedagógico, ou seja, tempo vivencial da alegria de estar aprendendo. (Assmann, 1998, p. 233,234)
E os professores e gestores nas horas de reunião, ou de planejamento e educação continuada, devem também viver a alegria de estar aprendendo, com tempo e paz nas relações. Ainda Assmann nos aponta algumas conclusões sobre como lidar com as pressões produtivistas, de necessidade de otimização do tempo e de processos compactados e superficialmente vividos, e ao mesmo tempo lidar com as necessidades da escola com seu tempo pedagógico.
Em si não há nada de novo em constatar que cada sociedade e cultura sempre está lidando com um número plural de temporalidades – cronológicas e kairológicas, tempos de relógio e tempos vivenciais – ao dar formas organizadas às relações sociais. A fixação do conceito de tempo em seu aspecto mensurável era condizente com um determinado conceito de ciência e com a ânsia de controle máximo dos tempos políticos e dos tempos produtivos. A expansão de uma ideologia produtivista tornou cruelmente seletiva a valorização dos tempos humanos, dividindo-os em tempos que valem (muito ou pouco) e tempos que nada valem, desde o ponto de vista econômico-produtivista. O novo desafio consiste em perceber que essa lógica moderna de valorização e/ou desvalorização do tempo está entrando em colapso no interior do próprio sistema produtivo. (Assmann, 1998, p. 215)
Porque aqueles tempos nada valem?
Em síntese, eu diria que a própria organização da economia, mas sobretudo a organização plurivalórica da sociedade pós-moderna, está mostrando a necessidade de pensar conjuntamente chrónos e kairós tempo-do-relógio e tempo das vivências, tempo natural e tempo histórico. (p. 216)
O objetivo do tempo pedagógico não é apenas um ensino bem estruturado, mas a configuração dessa parte instrucional da pedagogia em função da construção personalizada e da celebração do conhecimento como descoberta prazerosa.
A dimensão temporal do processo de aprendizagem não se refere apenas ao tempo cronológico (horários), mas a uma pluralidade de tempos que estão em jogo, conjuntamente na educação: horário escolar, tempo da informação, instrucional, tempo de leitura e estudo, tempo de auto-expressão construtiva, tempo do erro como parte da conjectura e da busca, tempo da inovação curricular criativa, tempo de gestos e interações, tempo do brinquedo e do jogo, tempo para desenvolver auto-estima, tempo de dizer sim à vida, tempo de organizar esperanças.
O entrelaçamento e direcionamento dessas múltiplas temporalidades sobre a flecha do tempo cronológico não acontece pelo mero transcurso dos dias letivos. Requer investimento intenso de energias humanas para que o aspecto árduo e disciplinado do ensino e da aprendizagem apontem a vivificação dos tempos pessoais de todos os envolvidos. (Assmann, 1998, p. 232, 233)
Sabendo disso, podemos recorrer a Alves (1993) para entender melhor porque na escola as coisas são diferentes. Ele nos diz:
[...] toda a educação, as aprendizagens, dependem da linguagem. A criação de sentidos não depende só de nós com a natureza. Depende dos outros que nos ensinarão.
O comportamento humano, individual e coletivo, se processa concomitantemente com uma série de explicações intelectuais do mesmo, explicações que pretendem ser racionais mas que, no fundo, são ilusões ou ideologias. A verdade, entretanto, é que o verdadeiro motor do comportamento não se encontra na razão, mas em níveis obscurecidos pela pseudo-racionalidade que elaboramos. A tarefa, portanto, é desmistificar esta pseudo-racionalidade a fim de descobrir a lógica dos fatores que realmente determinam o comportamento. (Alves, 1993, p. 90)
[...] enquanto a crítica das ilusões e das ideologias não for levada a cabo estaremos condenados a ser prisioneiros de forças irracionais que não conhecemos e que não desejamos conhecer. [...] Podemos começar substituindo as afirmações pelas interrogações. Os dogmas têm que ser transformados em dúvidas [...] os pontos de chegada em pontos de partida. (Alves, 1993, p. 90)
Alves, citando Freud e Marx, afirma que é o amor que decide a batalha (1993, p. 92).
A “verdade” não tem o poder para moldar o comportamento: o comportamento emerge das emoções. [...] Não é a idéia que gera o comportamento mas sim o interesse. As idéias nada mais são do que trilhos nos quais o interesse corre. (Alves, 1993, p. 91)
Daí a necessidade do afeto e respeito, além da necessidade do clima democrático e de diálogo e negociação que precisam acontecer em todas as situações que se deseje sejam educativas: na aula, na reunião de professores, na cantina ou em qualquer outra dentro da escola. Quem recebe ou desenvolve atividades em situações frias, ou naquelas em que o controle dos tempos e resultados é imperativo, não entra em vibração natural, não vê nascer seus potenciais, e não dedica memórias nobres em suas construções mentais.
Entre 2001 e 2003 desenvolvi pesquisa junto a três escolas públicas. Desde o início se ouvia falar, e mais do que isso, se sentia a falta de tempo das pessoas. Faltava tempo para a reflexão. Faltava tempo para o planejamento e organização das ações educativas. As carências e urgências tomavam conta dos tempos dos educadores (professores, gestores...). E em função dessa precariedade, as relações entre as pessoas perdiam muito de seu potencial educativo: nas reuniões de professores, nos horários de aula, nos intervalos...
No projeto CER, falávamos em criar espaços para reflexão, e no princípio parecia impossível. Depois, como que de repente, esses espaços foram sendo instituídos, com facilidade. A diretora tinha esse poder na mão mas eu não sabia. De um momento para outro as diretoras assumiram que aconteceriam os Encontros e para isso conseguiram aprovação no nível da Diretoria de Ensino. (Vallin, 2004, p.174)
A grande conclusão a que cheguei é que, como insiste Freire (1996, p.58), precisamos tomar a história em nossas mãos. Numa situação em que as pessoas encontram-se destruídas, para que possam reconstruir-se,
[...] é importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase “coisas”, para depois serem homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é a posteriori. A luta por esta reconstrução começa no auto-reconhecimento de homens destruídos. [...] Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora [...]. ( Freire, , 1987, p. 55, grifos do autor)
Quem vive a escola e a falta de tempo do professor e dos gestores, ao afastar-se e analisar o problema, pode perceber melhor que não é só uma questão de tempo, ou de verbas especiais, mas trata-se também de uma luta para desenvolver a consciência crítica a respeito do valor da reflexão e reconstrução conjunta. Trata-se de dar valor ao diálogo, ao planejamento coletivo, às avaliações apresentadas e compartilhadas em comunidade.
Não se trata de uma defesa da escola tradicional. Ao contrário. Os hábitos de escola que hoje fazem parte do senso comum são aqueles que Arroyo (2004) cita como escola transmissiva e Freire (1987) chama de ensino bancário. Também não se trata de afrouxar as responsabilidades dos educandos. Ao contrário. Desenvolver a cidadania e a autonomia (Freire, 1996) significam atitudes que colocam cada vez mais os sujeitos ligados às responsabilidades de seus atos e dos movimentos em que participam. Propõe-se a diminuição do fazer ativista, levando alunos e educadores ao desenvolvimento da consciência, e com isso a responsabilidade. Também não se trata de uma dicotomia entre escola e empresa. Ao contrário. Propõe-se uma escola que forme cidadãos criativos, críticos, solidários e que saberão levar estes valores e competências também aos ambientes empresariais, e que além de se integrarem ao mundo do trabalho, se lançarão a construir um mundo melhor. Nesse mundo melhor, espera-se que o tempo seja relativo, e que o principal seja a paz e alegria das pessoas. Trabalhar, produzir e ganhar dinheiro significa envolver-se com o “mundo cão” sim, mas não pode significar aceitá-lo como se já estivesse dado. Na empresa, o cidadão pleno estará sempre na luta para construir relações mais humanas, produtos mais éticos, envolvimentos empresariais mais responsáveis... E estará ajudando a construir e desenvolver empresas e instituições mais éticas, responsáveis e solidárias.
Por isso é preciso que se veja a questão do tempo como um problema educativo. É preciso que as pessoas da escola, e dos sistemas de ensino, se coloquem em comunhão, buscando valorizar cada momento vivido no coletivo, valorizando a reflexão em comunidade, com estudo e trabalho pedagógico. É preciso ver o educador como um sujeito que, em diálogo com seus pares e com a comunidade, constrói e reconstrói (a prática educativa, os ambientes de aprendizagem, o jeito de fazer escola) e não como um aplicador de processos ou reprodutor de esquemas de ensino.
Não adianta ficar repetindo, como na embolada:
Você quer parar o tempo
E o tempo não tem parada
Você quer parar o tempo
O tempo não tem parada

(Alceu Valença – Embolada do tempo)

Talvez nossa resposta já estivesse escrita há muito tempo:
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

(Fernando Pessoa em De Nicola, 1995)

Este é o dia, esta é a hora. Vamos ao saboreamento existencial. Aprendamos a arte intuitiva de tecer kairos. Todos os tempos devem valer.


Referências Bibliográficas

ALVES, Rubem. Conversas com quem gosta de ensinar. -27. ed. – São Paulo: Cortez, 1993.
ARROYO, Miguel G. Imagens quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres. Petrópolis, RJ : Vozes, 2004.
ARROYO, Miguel G. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
DALI, Salvador. A persistência da memória. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Persist%C3%AAncia_da_Mem%C3%B3ria em 17/8/2005
DE NICOLA, José; INFANTE, Ulisses. Fernando Pessoa: livro do professor. São Paulo, Scipione: 1995.
FAZENDA, Ivani C. A. Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa. -2. ed. – Campinas, SP : Papirus, 1985.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 7. edição, São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FULLAN, M. ; HARGREAVES, A. A escola como organização aprendente. Porto Alegre: Artmed, 2000.
GARCIA, Joe de Assis. Interdisciplinaridade, tempo e currículo. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2000.
HERNÁNDEZ, Fernando. O tempo nos projetos de trabalho. Pátio, revista pedagógica. n. 30. Maio/Julho/2004. p. 12-15
VALENÇA, Alceu. Embolada do tempo. Disponível em http://cultura.dgabc.com.br/materia.asp?materia=456780 – (Diário do Grande ABC OnLine – 21/1/2005)
VALLIN, Celso. Projeto CER: comunidade escolar de estudo, trabalho e reflexão. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP, 2004. Disponível em http://pontodeencontro.proinfo.mec.gov.br/

VIOLA, Paulinho. Sinal fechado. Disponível em http://paulinho-da-viola.letras.terra.com.br/letras/48064/ em 17/8/2005

quarta-feira, 10 de julho de 2013

TRABALHO

Para conversar sobre "o trabalho", proponho duas "leituras".


A primeira é a
Revista Cult Edição 139 > Dossiê trabalho

O trabalho na balança dos valores.
ALBATROZ, Suzana e outros
Disponível em <http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/o-trabalho-na-balanca-dos-valores/>. Acesso em 2013.07.10


A segunda é o vídeo de Cortella, falando aos trabalhadores da Câmara Municipal de São Paulo

Publicado em 06/11/2012
Palestra de Mário Sérgio Cortella sobre o livro
"Vida e Carreira, o equilíbrio possível?"
dele e de, Pedro Mandelli. Editora Papirus 7 mares. 1a ed. 2011
1h45min
Disponível em <http://youtu.be/4AETcZOv2Ac>. Acesso em 2013.07.10

Aqui vão algumas palavras e o desafio de você escrever um texto, baseando-se no que viu, leu e viveu, e que as contenha.
TRABALHO <=> emprego
trabalho ==> tri-pálio > tridente. Trabalho = tronco (Lêlê - escravização?)
Poiesis = Labor
Vida e profissão
Sentidos da vida
Coletivo, humanidade
Política x idiota

Fazer o possível x faze o melhor = com capricho
NÃO MEDIOCRIZAR A VIDA

Não aceitar ser morno.

Assista o vídeo (com tem 1h45min, pode ser só a primeira meia hora).

Leia a revista indicada. Faça suas anotações. Converse a respeito.


sexta-feira, 5 de julho de 2013

CORTELLA, 2003

Que tal estudar um pouco?
Procurando colaborar em articulações de estudo de meus/minhas alunos/as compartilho aqui algumas perguntas e comentários possíveis ao capítulo 1 “Humanidade, cultura e conhecimento” (CORTELLA, 2003).

Q1. Cortella afirma que o conhecimento humano não é só o científico? Quais outros tipos de conhecimento são apontados?

Q2. O ser humano não é um animal especializado. Isso porque é capaz de se inventar, de adaptar diferentes habitats ao que precisa. Cite três exemplos de construções alternativas às condições naturais e que colaboram para o bem estar e a vida dos humanos.

Q3. Do ponto de vista da anatomia e funcionalidade do corpo humano, cite ao menos dois fatores que são apontados no texto e que nos fizeram diferentes dos demais animais?

Q4. Do ponto de vista social, cite ao menos dois aspectos que colaboram para o sucesso dos humanos segundo o texto.

Q5. Cultura é o conjunto de conhecimentos de um grupo humano, como conhecimentos tecnológicos, sociais, artísticos, práticos. ´/e verdade que há muita gente que não tem cultura, como dizem tantas vezes? Justifique.

Q6. A cultura em que somos educados determinará quem seremos? Ou nós é que construímos nossa cultura, nosso conhecimento e nosso modo de organizar, fazer e resolver os desafios da vida? Quando nascemos já está conosco tudo o que seremos? E se fôssemos educados por um grupo indígena, seríamos diferentes? Quem inventa quem – a cultura condiciona a pessoa ou a pessoa condiciona a cultura? Justifique brevemente sua resposta.

Q7. As tecnologias nos condicionam? Os avanços tecnológicos vieram para ficar, queiramos ou não, gostemos ou não, seja para o bem ou para o mal? Ou temos o poder de subjulgar, recusar ou subverter as tecnologias conforme nossa vontade?

Q8. Onde está o conhecimento: em nossas mentes ou nos artefatos que usamos (ferramentas, tecnologias como telefone celular, cadeira...?

Q9. Cite até três instituições que colaboram para que a pessoa humana aprenda a cultura de nosso grupo social?

Q10. Diante da visão de cultura como uma construção, qual o papel de uma só pessoa, diante da cultura?

Q11. O que é alteridade? Que lógicas e motivos levam as pessoas a insistirem em desvalorizar quem é diferente delas? O que é etnocentrismo?

Q12. Indique verdadeiro ou falso conforme o texto (CORTELLA, 2003).
a. ( ) - Passado é o mesmo que atrasado e futuro nos indica o progresso.
b. ( ) - Racionalidade leva à verdade sempre.
c. ( ) - A teoria, a ciência, a técnica, as tecnologias levam à melhoria de vida, sempre.
d. ( ) - A realidade pode ser vista como algo acabado, dado.
e. ( ) - Devemos nos apoiar no passado sem nos limitar a ele.
f. ( ) - Devemos aceitar novidades sem desprezar o que já tínhamos e sabíamos.

Aqui vão as respostas que eu mesmo daria às questões. Mas há outras respostas possíveis.
Se você discordar, se tiver outros pontos de vista, ou se desejar perguntar algo, pode escrever e postar aqui no blog.

Q1. Cortella afirma que o conhecimento humano não é só o científico? Quais outros tipos de conhecimento são apontados?

R1. Conhecimento estético, religioso e afetivo.

Q2. O ser humano não é um animal especializado. Isso porque é capaz de nos se inventar, de adaptar diferentes habitats ao que precisa. Cite três exemplos de construções alternativas às condições naturais e que colaboram para o bem estar e a vida dos humanos.

R2. Ar condicionado, irrigação de plantações, próteses dentárias.

Q3. Do ponto de vista da anatomia e funcionalidade do corpo humano, cite ao menos dois fatores que são apontados no texto e que nos fizeram diferentes dos demais animais?

R3. Andar em duas pernas e em pé deixando as mãos livres para outras coisas; ter e desenvolver grande habilidade com as mãos, ter uma massa encefálica maior.

Q4. Do ponto de vista social, cite ao menos dois aspectos que colaboram para o sucesso dos humanos segundo o texto.
R4. Ferramentas e tecnologias são objetos que inventamos e construímos e que são usados para coisas que só com o uso do corpo seriam difíceis ou impossíveis; organizamos instituições como biblioteca pública, governos executivo, legislativo e judiciário; sinal de trânsito.

Q5. Cultura é o conjunto de conhecimentos de um grupo humano, como conhecimentos tecnológicos, sociais, artísticos, práticos. ´/e verdade que há muita gente que não tem cultura, como dizem tantas vezes? Justifique.
R5. Todos têm cultura, se considerarmos no sentido de conhecimentos.

Q6. A cultura em que somos educados determinará quem seremos? Ou nós é que construímos nossa cultura, nosso conhecimento e nosso modo de organizar, fazer e resolver os desafios da vida? Quando nascemos já está conosco tudo o que seremos? E se fôssemos educados por um grupo indígena, seríamos diferentes? Quem inventa quem – a cultura condiciona a pessoa ou a pessoa condiciona a cultura? Justifique brevemente sua resposta.
R6. As duas coisas são verdadeiras. Precisamos aprender com os demais membros de nossa cultura e o modo como iremos agir dependerá muito do modo que o grupo orienta e se organiza. Por outro lado, todo o conhecimento e cultura foi inventado pelas pessoas e cabe a nós criticar tudo o que aprendemos e escolher o que conservaremos, e o que nos posicionaremos contra, em posição de mudar. Quem aceita tudo sem crítica e transformação é uma pessoa conservadora. Que está aberto/a a transformações e reconstrução cultural pode ser chamado/a de progressista.

Q7. As tecnologias nos condicionam? Os avanços tecnológicos vieram para ficar, queiramos ou não, gostemos ou não, seja para o bem ou para o mal? Ou temos o poder de subjulgar, recusar ou subverter as tecnologias conforme nossa vontade?
R7. Nós inventamos e construímos as tecnologias para que nos sirvam. Elas são criações humanas e como tal, nós devemos criticá-las, fazê-las melhorar, alterá-las, subvertê-las quando preciso.
Q8. Onde está o conhecimento: em nossas mentes ou nos artefatos que usamos (ferramentas, tecnologias como telefone celular, cadeira...?
R8. Em ambos. Mesmo podendo ser subvertidas, as tecnologias carregam ideias consigo.

Q9. Cite até três instituições que colaboram para que a pessoa humana aprenda a cultura de nosso grupo social?
R9. Escola, família, igreja, TV e outras mídias de massa, sindicato, coral, diretório acadêmico...

Q10. Diante da visão de cultura como uma construção, qual o papel de uma só pessoa, diante da cultura?
R10. A pessoa deve procurar aprender um pouco de tudo o que seu grupo humano sabe, mas deve também colocar-se como alguém com possibilidade para questionar a cultura e recriar algo, discordar, criticar.

Q11. O que é alteridade? Que lógicas e motivos levam as pessoas a insistirem em desvalorizar quem é diferente delas? O que é etnocentrismo?
R11. Alteridade é o respeito e valorização de outras formas de pensar, de ser e de comportar-se, que não seja igual às nossas. O que acontece é chamado de etnocentrísmo, que é a característica de entendermos que existiria somente uma cultura, e não muitas, e que essa fosse uma construção linear e lógica. Pensando dessa maneira, as pessoas acabam considerando que quem vai contra a cultura vigente e hegemônica estaria sempre errado.

Q12. Indique verdadeiro ou falso conforme o texto (CORTELLA, 2003).
a. ( ) - Passado é o mesmo que atrasado e futuro nos indica o progresso.
b. ( ) - Racionalidade leva à verdade sempre.
c. ( ) - A teoria, a ciência, a técnica, as tecnologias levam à melhoria de vida, sempre.
d. ( ) - A realidade pode ser vista como algo acabado, dado.
e. ( ) - Devemos nos apoiar no passado sem nos limitar a ele.
f. ( ) - Devemos aceitar novidades sem desprezar o que já tínhamos e sabíamos.
R12. F; F; F; F; V; V


terça-feira, 11 de junho de 2013

"Seu Ciço" (BRANDÃO, 1981)

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. São Paulo : Ed. Brasiliense, 1981. <http://sitiodarosadosventos.com.br/livro/images/stories/anexos/o_que_educacao.pdf>. Acesso em 2013.01.07

Nesse texto o autor transcreve a palavra do agricultor "Seu Ciço", falando da educação e como a escola dá resultados diferentes para o filho do Antropólogo, que é da cidade, e os filhos dele, agricultor.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

FREIRE, 1979 p. 15 a 25

O Compromisso do Profissional com a Sociedade


A questão do compromisso do profissional com a sociedade nos coloca alguns pontos que devem ser analisados. Algumas reflexões das quais podemos fugir, necessárias para o esclarecimento do tema.
Em primeiro lugar, a expressão “o compromisso do profissional com a sociedade” nos apresenta o conceito do compromisso definido pelo complemento “do profissional”, ao qual segue o termo “com a sociedade”. Somente a presença do complemento na frase indica que não se trata do compromisso de qualquer um, mas do profissional. A expressão final, por sua vez, define o pólo para o qual o compromisso se orienta e no qual o ato comprometido só aparentemente terminaria, pois na verdade não termina, como trataremos de ver mais adiante.
As palavras que constituem a frase a ser analisada não estão ali simplesmente jogadas, postas arbitrariamente. Diríamos que se encontram, inclusive, “comprometidas” entre si e implicam, na estrutura de suas relações, uma determinada posição, a de quem as expressou.
O compromisso seria uma palavra oca, uma abstração, se não envolvesse a decisão lúcida e profunda de quem o assume. Se não se desse no plano do concreto.
Se prosseguirmos na análise da frase proposta, sentimos a necessidade de uma penetração cada vez maior no conceito do compromisso, com a qual podemos apreender aquilo que faz com que um ato se constitua em compromisso.
Mas, no momento em que esta necessidade nos é imposta, cada vez mais claramente, como uma exigência prévia à análise do compromisso definido – o do profissional com a sociedade -, uma reflexão anterior se faz necessária. É a que se concentra em torno da pergunta: quem pode comprometer-me?
Contudo, como pode parecer, esta pergunta não se formula no sentido da identificação de quem, entre alguns sujeitos hipotéticos – A, B ou C –, é o protagonista de um ato de compromisso, numa situação dada. É uma pergunta que se antecipa a qualquer situação de compromisso. Indaga sobre a ontologia do ser sujeito do compromisso. A resposta a esta indagação nos faz entender o ato comprometido, que começa a desvelar-se diante de nossa curiosidade.
De fato, ao nos aproximarmos da natureza do ser que é capaz de se comprometer, estaremos nos aproximando da essência do ato comprometido.
A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir.
É preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma pela qual está no mundo condiciona a sua consciência deste estar, é capaz, sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicionada. Quer dizer, é capaz de intencionar sua consciência para a própria forma de estar sendo, que condiciona sua consciência de estar.
Se a possibilidade de reflexão sobre si, sobre seu estar no mundo, associada indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhe são impostos pelo próprio mundo, do que resulta que este ser não é capaz de compromisso. É um ser imerso no mundo, no seu estar, adaptado a ele e sem ter dele consciência. Sua imersão na realidade, da qual não pode sair, nem “distanciar-se” para admirá-la e, assim transformá-la, faz dele um ser ”fora” do tempo ou “sob” o tempo ou, ainda, num tempo que não é seu. O tempo para tal ser “seria” um perpétuo presente, um eterno hoje. A-histórico, um ser como este não pode comprometer-se; em lugar de relacionar-se com o mundo, o ser imerso nele somente está em contato com ele. Seus contatos não chegam a transformar o mundo, pois deles não resultam produtos significativos, capazes de (inclusive, voltando-se sobre ele) marcá-los.
Somente um ser que é capaz de sair de seu contexto, de “distanciar-se” dele para ficar com ele; capaz de admirá-lo para, objetivando-o, transformá-lo e, transformando-o, saber-se transformado pela sua própria criação; um ser que é e está sendo no tempo que é o seu, um ser histórico, somente esse é capaz, por tudo isto, de comprometer-se.
Além disso, somente este ser é já em si um compromisso. Este ser é o homem.
Mas, se este ser é o homem que, além de poder comprometer-se, já é um compromisso, o que é compromisso?
Uma vez mais teremos de voltar ao próprio homem, em busca de uma resposta. Porém, não a um homem abstrato, mas ao homem concreto, que existe em uma situação concreta.
Afirmamos anteriormente que a primeira condição para que um ser pudesse exercer um ato comprometido era a sua capacidade de atuar e refletir. É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de acordo com as finalidades propostas pelo homem, à qual esta associada sua capacidade de refletir, que o faz um ser de práxis.
Se a ação e reflexão, como constituintes inseparáveis da práxis, são a maneira humana de existir, isto não significa, contudo, que não estão condicionadas, como se fossem absolutas, pela realidade em que está o homem.
Assim, como não há homem sem mundo, nem mundo sem homem, não pode haver reflexão e ação fora da relação homem-realidade. Esta relação homem-realidade, homem-mundo, ao contrário do contato animal com o mundo, como já afirmamos, implica a transformação do mundo, cujo produto, por sua vez, condiciona ambas, ação reflexão. É, portanto, através de sua experiência nesta relação que o homem desenvolve sua ação-reflexão, como também pode te-las atrofiadas. Conforme se estabeleçam estas relações, o homem pode ou não ter condições objetivas para o pleno exercício da maneira humana de existir.
Contudo, o fundamental é que esta realidade, proibitiva ou não do pensar e do atuar autêntico, é criação dos homens. Daí ela não pode, por ser história tal qual os homens que a criam, transformar-se por si só. Os homens que a criam são os mesmos que podem prosseguir transformando-as.
Pode-se pensar, diante desta afirmação, que estamos numa espécie de beco sem saída. Por que se a realidade, criada pelos homens, dificulta-lhes objetivamente seu atuar e seu pensar autênticos, como podem, então, transformá-la para que possam pensar e atuar verdadeiramente? Se a realidade condiciona seu pensar e atuar não autênticos, como podem pensar corretamente o pensar e o atuar incorretos? É que, no jogo interativo do atuar-pensar o mundo, se, num momento de experiência histórica dos homens, os obstáculos ao seu autêntico atuar e pensar não são visualizados, em outros, estes obstáculos passam a ser percebidos para, finalmente, os homens ganharem com eles sua razão. Os homens alcançam a razão dos obstáculos na medida em que sua ação é impedida. É atuando ou não podendo atuar que lhes acharam os obstáculos à ação, a qual não se dicotomiza da reflexão. E como o próprio da existência humana é a atuação-reflexão, quando se impede um homem comprometido de atuar, os homens se sentem frustrados e por isso procuram superar a situação de frustração.
Impedidos de atuar, de refletir, os homens encontram-se profundamente feridos em si mesmos, como seres de compromisso. Compromisso com o mundo, que deve ser humanizado para a humanização dos homens, responsabilidade com estes, com a história. Este compromisso com a humanização do homem, que implica uma responsabilidade histórica, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, da realidade concreta, onde se encontram os homens concretos. O compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cuja “águas” os homens verdadeiramente comprometidos ficam “molhados”, ensopados. Somente assim o compromisso é verdadeiro. Ao experienciá-lo, num ato que necessariamente é corajoso, decidido e consciente, os homens já não se dizem neutros. A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um “compromisso” contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão “comprometidos” consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível.
O verdadeiro compromisso é a solidariedade, e não a solidariedade com os que negam o compromisso solidário, mas com aqueles que, na situação concreta, se encontram convertidos em “coisas”.
Comprometer-se com a desumanização é assumi-la e, inexoravelmente, desumanizar-se também.
Esta é a razão pela qual o verdadeiro compromisso, que é sempre solidário, não pode reduzir-se jamais a gestos de falsa generosidade, nem tão pouco ser um ato unilateral, no qual quem se compromete é o sujeito ativo do trabalho comprometido e aquele com quem se compromete a incidência de seu compromisso. Isto seria anular a essência do compromisso, que, sendo encontro dinâmico de homens solidários, ao alcançar aqueles com os quais alguém se compromete, volta destes para ele, abraçando a todos num único gesto amoroso.
Pois bem, se nos interessa analisar o compromisso do profissional com a sociedade, teremos que reconhecer que ele, antes de ser profissional, é homem. Deve ser comprometido por si mesmo.
Como homem, que não pode estar fora de um contexto histórico-social em cujas inter-relações constrói seu eu, é um ser autenticamente comprometido, falsamente “comprometido” ou impedido de comprometer verdadeiramente (impedido de comprometer-se verdadeiramente significa a situação na qual as grandes maiorias encontram-se manipuladas por minorias, através de ordens. Estas grandes maiorias tem a impressão de que se comprometem, quando, na verdade, são induzidas em seu “compromisso”. Escolhem entre as opções – no melhor dos casos – que as minorias lhes indicam, quase sempre manhosamente, pela propaganda).
No caso do profissional, é necessário juntar ao compromisso genérico, sem dúvida concreto, que lhe é próprio como homem, o seu compromisso de profissional.
Se de seu compromisso como homem, como já vimos, não pode fugir, fora deste compromisso verdadeiro com o mundo e com os homens, que é solidariedade com eles para a incessante procura da humanização, seu compromisso como profissional, além de tudo isto, é uma dívida que assumiu ao fazer-se profissional.
Seu compromisso como profissional, sem dúvida, pode dicotomizar-se de seu compromisso original de homem. O compromisso, como um quefazer radical e totalizado, repele as racionalizações. Não posso nas 2ªs feiras assumir compromisso como homem, para nas 3ªs feiras assumi-lo como profissional. Uma vez que “profissional” é atributo de homem, não posso, quando exercer um quefazer atributivo, negar o sentido profundo do quefazer substantivo e original. Quanto mais me capacito como profissional, quanto mais sistematizo minhas experiências, quanto mais me utilizo do patrimônio cultural, que é patrimônio de todos e ao qual todos devem servir, mais aumenta minha responsabilidade com os homens. Não posso, por isso mesmo, burocratizar meu compromisso de profissional, servindo, numa inversão dolosa de valores, mais aos meios que ao fim dos homens. Não posso me deixar seduzir pelas tentações míticas, entre elas a da minha escravidão às técnicas, que, sendo elaboradas pelos homens, são suas escravas e não suas senhoras.
Não devo julgar-me, como profissional, ”habitante” de um mundo estranho; mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos ignorantes e incapazes”. Habitantes de um gueto, de onde saio messianicamente para salvar os “perdidos”, que estão fora. Se procedido assim, não me comprometo verdadeiramente como profissional nem como homem. Simplesmente me alieno.
Todavia, existe algo que deve ser destacado. Na medida em que o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade -, inserção nela, ele implica indubitavelmente um conhecimento da realidade. Se o compromisso só é válido quando está carregado de humanismo, este, por sua vez, só é conseqüente quando está fundado cientificamente. Envolta, portanto, ao compromisso do profissional, seja ele quem for, está a exigência de seu constante aperfeiçoamento, de superação do especialismo, que não é o mesmo que especialidade. O profissional deve ir ampliando seus conhecimentos em torno do homem, de sua forma de estar sendo no mundo, substituindo por uma visão crítica a visão ingênua da realidade, deformada pelos especialismos estreitos.
Não é possível um compromisso verdadeiro com a realidade, e com os homens concretos que nela e com ela estão, se desta realidade e destes homens se tem uma consciência ingênua. Não é possível um compromisso autêntico se, àquele que se julga comprometido, a realidade se apresenta como algo dado, estático e imutável. Se este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques. Se não a vê e não a capta como uma totalidade, cujas partes se encontram em permanente interação. Daí sua ação não pode incidir sobre as partes isoladas, pensando que assim transforma a realidade, mas sobre a totalidade. É transformando a totalidade que se transformam as partes e não o contrário. No primeiro caso, sua ação, que estaria baseada numa visão ingênua, meramente “focalista” da realidade, não poderia constituir um compromisso.
Um profissional, por exemplo, para quem a Reforma Agrária é apenas um instrumento jurídico que normaliza uma sociedade em transformação, sem conseguir aprende-la em sua complexidade, em sua globalidade, não pode em termos concretos comprometer-se com ela, ainda que ideologicamente a aceite.
A questão é que a Reforma Agrária, como um processo global, não é algo que, não existindo anteriormente, passa a existir completa e acabadamente, com a instauração de uma estrutura nova. A Reforma Agrária, por ser um processo, é algo dinâmico. Dá-se no domínio humano. As relações homem-realidade, que se verificavam na estrutura anterior, necessariamente deixaram sua marca profunda na forma de estar sendo do camponês. Mudada a velha estrutura, através da Reforma, se inevitável é que, cedo ou tarde, a estrutura instaurada condicione novas formas de pensar e de atuar, resultantes das novas relações homem-realidade, isto não significa que essa mudança se dê instantaneamente.
O compromisso, portanto, de um profissional da Reforma Agrária que a veja sob esta visão criticada, não pode ser verdadeiro, não pode ser o compromisso do profissional, em cuja ação de caráter técnico se esquece do homem ou se o minimiza, pensando, ingenuamente, que existe o dilema humanismo-tecnologia. E, respondendo ao desafio do falso dilema, opta pela técnica, considerando que a perspectiva humanista é uma forma de retardar as soluções mais urgentes. O erro desta concepção é tão nefasto como o erro da sua contrária – a falsa concepção do humanismo -, que vê na tecnologia a razão dos males do homem moderno. E o erro básico de ambas, que não podem oferecer aos seus adeptos nenhuma forma real de compromisso, está em que, perdendo elas a dimensão da totalidade, não percebem o óbvio: que humanismo e tecnologia não se excluem. Não percebem que o primeiro implica a segunda e vice-versa. Se o meu compromisso é realmente com o homem concreto, coma causa de sua humanização, de sua libertação, não posso por isso mesmo prescindir da ciência, nem da tecnologia, com a quais me vou instrumentando para melhor lutar por esta causa.
Por isso também não posso reduzir o homem a um simples objeto da técnica, a um autômato manipulável.
Quase sempre, técnicos de boa vontade, embora ingênuos, deixam-se levar pela tentação tecnicista (mitificação da técnica) e, em nome do que chamam “necessidade de não perder tempo”, tentam, verticalmente, substituir os procedimentos empíricos do povo (camponeses, por exemplo) por sua técnica.
Partem do pressuposto verdadeiro “de que é, não só necessário, mas urgente, aumentar a produção agrícola”. Uma das “exigências para consegui-lo está na mudança tecnológica que deve verificar-se”. Outro pressuposto válido.
No entanto, ao desconhecer que tanto sua técnica como os procedimentos empíricos dos camponeses são manifestações culturais e, deste ponto de vista, ambas válidas, cada qual em sua medida, e que, por isso, não podem ser mecanicamente substituídos, enganam-se e já não podem comprometer-se.
Terminam, então, por cair nesta irônica contradição: “para não perder tempo” o que fazem é perde-lo.
Deformados pela acriticidade, não são capazes de ver o homem na sua totalidade, no seu quefazer-ação-reflexão, que sempre se dá no mundo e sobre ele. Pelo contrário, será mais fácil, para conseguir seus objetivos, ver o homem como uma “lata” vazia que vão enchendo com seus “depósitos” técnicos. Mas ao desenvolver desta forma sua ação, que tem sua incidência neste “homem lata”, podemos melancolicamente perguntar: “onde está seu compromisso verdadeiro com o homem, com sua humanização?”
Todavia em nossos países há sem dúvida uma sombra que ameaça permanentemente o compromisso verdadeiro. Ameaça que se concretiza na autenticidade do compromisso. Estamos nos referindo à alienação (ou alheamento) cultural que sofrem nossas sociedades.
Com o centro de decisão econômica e cultural, em grande parte fora delas (portanto, sociedades de economia periférica, dependente, exportadoras de matérias-primas e importadoras não somente de produtos manufaturados, mas também de ideias, de técnicas, de modelos), são sociedades “seres para outro”.
Assim, o primeiro grande obstáculo que se apresenta nestas sociedades ao compromisso autêntico encontra-se na falta de autenticidade de seu próprio ser dual. Estas sociedades são e não são elas próprias.
Na medida em que, em grande parte, para solucionar seus problemas, importam técnicas e tecnologias, sem a devida “resolução sociológica” destas as suas condições objetivas (não necessariamente idênticas às das sociedades metropolitanas, onde se desenvolvem estas tecnologias importadas), não podem proporcionar as condições para o compromisso autêntico.
Não há técnicas neutras que possam ser transplantadas de um contexto a outro. A alienação do profissional não lhe permite perceber esta obviedade. Seu compromisso se desfaz na medida em que o instrumento para a sua ação é um instrumento estranho, às vezes antagônico, à sua cultura.
O alienado, seja profissional ou não, pouco importa, não distingue o ano do calendário do ano histórico. Não percebe que existe uma não-contemporaneidade do coetâneo.
Todas estas manifestações de alienação e outras mais, cuja análise detalhada não nos cabe aqui fazer, explicam a inibição da criatividade no período de alienação. Esta, geralmente, produz uma timidez, uma insegurança, um medo de correr risco da aventura de criar, sem a qual não há criação. No lugar deste risco que deve ser corrido (a existência humana é risco) e que também caracteriza a coragem do compromisso, a alienação estimula formalismo, que funciona como uma espécie de cinto de segurança.
Daí o homem alienado, inseguro e frustrado, ficar mais na forma que no conteúdo; ver as coisas mais na superfície que em seu interior.
Seu “pensamento” não tem força instrumental porque nasce de seu contexto para voltar a ele. Constitui-se na nostalgia de mundos alheios e distantes. Seu “pensamento”, finalmente, não tem força, nem para o seu mundo, porque dele não nasceu, nem para o outro, o mundo imaginário da sua nostalgia.
Desta forma, como comprometer-se?
Entretanto, no momento em que a sociedade se volta sobre si mesma e se inscreve na difícil busca de sua autenticidade, começa a dar evidentes sinais de preocupação pelo seu projeto histórico.
Quanto mais cresce esta preocupação, mais desfavorável se torna o clima para o compromisso.
Estamos convencidos de que o momento histórico da América Latina exige de seus profissionais uma séria reflexão sobre sua realidade, que se transforma rapidamente, e da qual resulte sua inserção nela. Inserção esta que, sendo crítica, é compromisso verdadeiro. Compromisso com os destinos do país. Compromisso com seu povo. Com o homem concreto. Compromisso com o ser mais deste homem.
Se, numa sociedade preponderantemente alienada, o profissional, pela natureza mesma da sociedade estruturada hierarquicamente, é um privilegiado, numa sociedade que se está abrindo o profissional é um comprometido ou deve sê-lo.
Fugir da concretização deste compromisso é não só negar-se a si mesmo como negar o projeto nacional.

FREIRE, Paulo Educação e Mudança. Rio de Janeiro, RJ: Editora Paz e Terra, 1979.